é um clássico; de vez em quando, você tem dois períodos de educação física no final das manhãs de quinta-feira, e de vez em quando, isso acontece toda semana. você sempre tenta subliminarmente implantar pensamentos no seu professor de educação física para fazer com que, desta vez, vocês joguem futebol. você acredita em mensagens subliminares e não acredita na existência de um plano de ensino coeso e bem estruturado. pelo menos com esse professor, você sabe que não passará uma hora e meia dentro da sala de informática pesquisando sobre um esporte que você nunca ouviu falar para eventualmente apresentar na frente de uma classe que nunca ouviu falar de tal esporte, mas também não tem qualquer interesse em aprender algo novo em uma aula de educação física.
“vocês acham que faculdade de educação física é um semestre de vôlei, um semestre de basquete, um semestre de handebol e um semestre de futebol?” não. eu imagino que deve ter um semestre de atletismo também.
uma quadra e um ginásio, e se vocês estiverem indo para o ginásio, hoje não tem futebol. você tem altura para vôlei e altura para basquete, mas não tem o menor interesse em esportes que utilizem as mãos. você até pode ser ok nestes esportes, mas não é aí onde mora a sua paixão. se a quadra for o destino de sua turma, menos mal; espero que hoje não nos façam jogar pique-bandeira, e espero que hoje não nos façam jogar queimada. espero que hoje não nos façam jogar handebol. é divertido ser goleiro de handebol, mas não é o que eu quero e não é o que eu busco. se eu não tiver exatamente o que eu quero, eu me frusto.
futebol. por favor, futebol. por favor, o esporte que eu não sei jogar. o esporte que me traz ansiedade, e o esporte que nem sequer faz sentido para mim. no vôlei, no basquete e no handebol eles me escolhem mais rápido. eu nunca fui a última pessoa a ser escolhida para um time de futebol, graças a Deus. é uma humilhação que eu nunca precisei passar. mas penúltima a ser escolhida, sim. é um alívio indescritível. você sente o peso do mundo caindo de seus ombros. “eu não sou a pior pessoa aqui”, você pensa. “sempre tem alguém pior que eu”. eu não acompanho os meus colegas do ensino fundamental nas redes sociais; não há motivo algum para isso. os amigos sim, tudo certo. um está na Espanha, outro morando no interior da Irlanda, outro parece estar sempre em algum país da Europa sem residência fixa. um nômade.
eu não sei como está o Douglas, o último garoto a ser escolhido. mas talvez ele tenha se tornado árbitro de futebol.
será que todos os nossos problemas adultos vêm de uma infância frustrada? apesar da minha analista dizer que “sim, Isabela, é exatamente isso, e eu não vou te deixar fugir desse assunto hoje”, eu não creio cegamente nisso. pelo menos alguns são uma falha de caráter intrínseca ao nosso ser. um árbitro de futebol sabe que vai ser odiado por todo mundo ao seu redor, inclusive familiares e amigos próximos caso decida cometer um erro crasso em uma partida que envolva o time do coração de um familiar ou de um amigo próximo.
será que existe uma pressão vinda de si mesmo para não errar nessa próxima partida entre Vila Nova e Novorizontino porque o seu Darcy, o avô da sua esposa, é fanático pelo Novorizontino? claro, um árbitro de futebol é profissional. ele não pode deixar as emoções falarem mais alto, mas mesmo sabendo que você não pode deixar as emoções falarem mais alto, as emoções podem simplesmente gritar e te obrigar a escutá-las.
existe psicotécnico para árbitro de futebol? imagino que deva existir. é uma profissão de alta periculosidade em que você precisa manter os sentimentos e os pensamentos externos o mais longe possível. nem pense em ser influenciado pelo fantasma do ainda-vivo seu Darcy. isso não pode acontecer. mas você escolhe quais fantasmas te assombram? falta na linha da grande área para o Novorizontino. parecia que o Matheus Frizzo tinha se jogado, mas eu não posso pensar nisso agora. a decisão já foi tomada. eu não posso mais pensar nisso. a decisão já foi tomada. eu não sei se o Novorizontino possui bons batedores de falta, mas eu espero, pelo meu próprio bem-estar, que não possua. apito, falta cobrada direto nas mãos do goleiro. menos mal.
ser árbitro de futebol é ter sede de controle. ser árbitro de futebol é BDSM; regras rígidas e bem estabelecidas que os seus parceiros seguirão a risca, e talvez seu parceiro seja o capitão da Aparecidense em um duelo dramático contra o Floresta valendo um rebaixamento para a quarta divisão nacional. um calor infernal na cidade de Fortaleza, dois corpos em atrito mas sem contato. vinte e três corpos em atrito. um cartão amarelo é uma safe word. talvez as coisas continuem, talvez elas acabem em breve.
você precisa saber muito o que quer para se tornar árbitro de futebol. uma pessoa decidida, que não tem pode sentir pena do outro. você tem que se tornar o menos humano possível. apesar das similaridades, um juiz precisa ser muito mais humano do que um árbitro de futebol. o árbitro de futebol ideal é uma máquina sem sentimentos, criada para seguir leis. se o futebol não fosse um esporte, ele seria substituído inteiramente por uma inteligência artificial em poucos anos; infelizmente, o futebol é um esporte e o contato é necessário.
um árbitro robô resolveria grande parte dos problemas, mesmo que isso não impedisse John Textor de blasfemar contra o imaginário árbitro robô e reclamar de favorecimentos descabidos para outros times cariocas só porque a tecnologia foi produzida em um laboratório secreto no subsolo do Ninho do Urubu. o árbitro de futebol ideal é um psicopata.
isso não significa, claro, que todos os árbitros de futebol atuantes no Brasil no ano de 2025 sejam psicopatas; só os melhores.
eu acredito que boa parte — talvez uns 30% a 40% — desses homens e mulheres tiveram, em algum momento, sonhos e aspirações. amantes de futebol desde cedo, se apaixonaram pelo esporte assistindo o Vasco da Gama de Romário e Edmundo vencendo o Manchester United naquele assustador Mundial de 2000. talvez o ídolo deles era o Diego, menino da Vila, ou talvez aquele Atlético Mineiro de Guilherme nunca saiu de suas cabeças. eles não prestavam atenção no nome de quem expulsou Belletti na final de 1999, mas eles lembram que Belletti foi expulso na final de 1999. eles não tinham uma camisa de árbitro de futebol na infância, mas eles tinham uma camisa do São Paulo bicampeão mundial. em algum ponto do caminho, o sonho morreu e um outro sonho nasceu.
talvez essas pessoas foram se conhecendo mais, descobrindo mais sobre si mesmas com seus relacionamentos. uma graduação de educação física pode levar a muitos lugares, e quem sabe o semestre de futebol ficou marcado em suas memórias. talvez nem tenha sido o semestre em si; talvez tenham sido as amizades feitas naquele momento, ou uma pessoa com quem estava junto, ou idas frequentes ao bar que acabaram se fundindo e criando, em sua cabeça, uma ilusão de que aquele semestre havia sido ótimo por causa do futebol. e a felicidade vicia. e você decide que precisa exatamente disso pra sua vida. as amizades vão embora, a pessoa vai embora, o bar fechou há alguns anos. no que mais você pode se agarrar? o que ainda persiste, apesar de tudo?
você está na escala para a próxima rodada do Gauchão A2 Sub-17. alguém precisa apitar Panambi x Lajeadense. talvez seja você.
Eu não sei se foi de propósito ou não, mas achei maravilhoso você ter falado sobre pessoas muito decididas e logo depois ter ficado em dúvida entre colocar "que não tem pena do outro" ou "que não pode sentir pena do outro" e no final ter misturado os dois.
Meu eu indeciso se sentiu representado
Caracaaa. QUE TEXTO MASSA! Árbitro de futebol. Esse é um dos meus sonhos improváveis, kkkkkkkk. Eu realmente tô gostando muito de futebol, mas sou péssimo jogando. E acredito que minha personalidade se encaixaria bem nessa profissão.