se tem uma coisa que eu descobri esse ano, depois de tudo que aconteceu, todos os momentos horríveis e todos os momentos insanos e todos os momentos até normais mas ainda assim não exatamente ideais, tudo de horrível, tudo de péssimo e tudo de horroroso, tudo que valeu a pena e tudo que não valeu a pena, tudo que eu senti e deixei de sentir, tudo que foi e tudo que não foi… é que a gente só precisa acreditar no rock.
o rock, entidade perversa, entidade misteriosa, entidade em itálico. podem ficar tranquilos; eu tento pensar em qualquer relação com a minha infância e não me vem quase nada na cabeça. eu poderia tentar discorrer nem que seja um pouco sobre escutar os discos mais ignorados do Raul Seixas em uma metafórica e constante viagem para Brusque, oito anos de idade ouvindo Mata Virgem como se eu conseguisse entender ou sentir as referências religiosas, parte de um plano secreto, ninguém sabia quem era o dono da Havan em 2005, mas eu prefiro focar no presente dessa vez. prefiro não; preciso. Eles, entidade que estou começando a entender, não me deixariam fazer outra coisa. mas se algo mudar, eu te aviso. você vai ser a primeira a saber
é que de vez em quando, você precisa de uma segurança. um capacete em uma obra porque a qualquer momento um martelo pode cair na sua cabeça. um capacete em uma obra não te protegeria de um acidente com um elevador, não te protegeria de uma viga de ferro te atravessando, não te protegeria de uma queda do décimo-quarto andar. você devia ter prestado mais atenção. mas não é legal pensar que, se o único problema for um martelo caindo na sua cabeça, os danos físicos não serão tão graves quanto em uma realidade paralela onde você não está usando um capacete em uma obra? ele te dá aquela sensação gostosa de proteção, um acalento caso tudo dê errado. não vai resolver, mas quem sabe melhore. você precisa mesmo resolver tudo agora? você tem tanta pressa assim? eu estou olhando pro outro lado de propósito, desculpa. se quiser eu finjo que isso não aconteceu e falo sobre outra coisa
talvez se tornar muito fã de um artista aos 29 anos de idade, moleira fechada e empregos que você odeia, seja só um jeito de fingir que as coisas nunca mudaram. seja sincero: tem algo mais adolescente do que gostar muito de alguém que nem sabe da sua existência? descobrir que um homem de franja nos anos 1960 sentia as mesmas coisas que você ou que um homem de franja nos anos 2010 sentia coisas mais potentes que você ainda não entendia mas hoje, depois de tudo, você entende um pouco mais.
talvez meu fio condutor nessa vida seja o desespero. por muito tempo eu achei que ficava obcecada pelas pessoas que eu conhecia, longe ou perto. não vejo mais assim. uma obsessão parece ter um objetivo final; preciso ser consumida por tudo que tem a ver com isso. o tudo é finito; eu acredito que tem como esgotar todas as possibilidades de algo ou de alguém e, enfim, chegar em um ponto onde você vampiriscamente morde e suga tudo até não existir mais nada. provavelmente demora, mas uma hora acaba. o desespero nunca vai chegar em lugar algum. ele estará sempre presente e ele não vai querer ir embora. o desespero é amigo da dúvida; a obsessão pelo menos é uma certeza. é possível viver uma vida em desespero, caso assim deseje. talvez existam medicações que impeçam o desespero de te consumir não-vampiriscamente, mas sendo bem sincera, talvez não. pode estar tudo tranquilo e o desespero continuar tomando conta de sua psíque — inclusive, a sensação é de quanto mais tranquilas estiverem as coisas, mais desesperada você fica. não me pergunta se isso é vida; eu não vou saber te responder tão cedo. você pode escolher sua neurose na mesinha ao lado e seguir pra próxima sala
é só acreditar no rock. quando eu escutei o primeiro disco solo de Cameron Winter, Heavy Metal, no final do ano passado, eu senti uma revelação. sentido bíblico da palavra. Heavy Metal; falemos sobre Heavy Metal. esse ano me fez começar a fumar; Heavy Metal harmoniza com um cigarro. mais um Marlboro vermelho, não tanto um Sampoerna de cravo. Heavy Metal é um disco de folk californiano dos anos 1970, um Jackson Browne atrasado para o céu, Heavy Metal é um disco de indie rock dos anos 1990, o mais próximo que chegaremos de um David Berman sem precisar ir pro céu. Cameron Winter é um poeta e Cameron Winter não sabe o que quer. tudo é muito recente, eu sei disso, então ainda não dá pra dizer com exatidão, classificar numericamente, numa escala de 1 a 100, o quão Heavy Metal é tudo que eu sempre quis. sabe quando você encontra algo que é tudo que você sempre precisou? não? tudo bem, eu paro de falar sobre isso. eu continuarei quebrando copos até a minha mão esquerda estragar
e quando eu digo que Heavy Metal é um disco anacrônico — anteriormente implicado e agora gritado —, Getting Killed é um disco anacrônico. duas bestas do mesmo pai, do mesmo filho e de espíritos santos similares. um cachorro normal com duas cabeças, Cerberus com duas cabeças. Getting Killed, lançado duas sextas-feiras atrás, é o terceiro disco do grupo Geese — se você desconsiderar o álbum gravado quando eles ainda eram uma banda de ensino médio tocando em shows de talento da grande Nova Iorque. Cameron Winter, cantor e compositor do Geese.
Getting Killed é uma coisa que eu não vou saber te explicar agora; se você veio pra cá buscando explicações, peço mil desculpas, mas eu também não te prometi nada. uma coisa eu posso te falar; Getting Killed existe desde sempre. é possível que Getting Killed não tenha sido escrito, gravado e mixado; talvez ele tenha sido descoberto. todas as canções nesse disco parecem estar aqui, nesse plano terrestre, há décadas. todas elas são imediatas, todas elas parecem fazer total sentido, todas elas são o que são e não se fala mais nisso. elas foram escavadas. Getting Killed é paleontologia. um parque jurássico com trilha sonora. e antes que me pergunte, Heavy Metal é antropologia.
em minha mente, em meu ser e porque não no âmago de minh’alma, é impossível separar Heavy Metal e Getting Killed. mesmo com todas as suas diferenças, eles coexistem pacificamente. digo mais; eles trocam olhares misteriosos quando estão juntos. é um olhar diferente, que nenhum dos dois entende ainda mas que já tem muita carga emocional por trás. talvez um dia os dois vão entender e talvez isso mude a vida deles para sempre, mas eu vou te falar; talvez não. esteja preparado para qualquer hipótese. mas é aquilo; Heavy Metal é obcecado, Getting Killed é desesperado. e aí, o que se faz com isso?
em Love Takes Miles, música catada no ar feito uma bolha de sabão por Cameron Winter, o amor demora anos. não é nem que o amor pode demorar anos; tem uma certeza aqui. ele está te olhando muito sério em uma mesa de bar e te avisando que sim, quem sabe vale a pena, mas vai demorar quilômetros — e é possível você me deixar e continuar me prometendo os seus sapatos. tanto faz. em Au Pays du Cocaine, música encontrada próxima a um sambaqui na Praia da Ferrugem por Cameron Winter, nossa, por favor, eu não sei quando isso vai acabar. pelo amor de Deus, não vai embora de jeito nenhum. tu pode ser livre, tudo bem, mas volta pra casa. eu estou tremendo e eu preciso de um Alprazolam. tu pode mudar, não tem problema, só por favor me escolhe. e no final, ainda por cima, tá tudo bem. igualzinho um marinheiro usando um casaco verde muito grande. e aí, o que se faz com isso?
Getting Killed é confuso. Getting Killed é um poeta e Getting Killed não sabe o que quer. Getting Killed está pegando um ônibus para a universidade mais cedo do que o normal porque não aguenta mais ficar parado no mesmo lugar e precisa se mexer para ter a ilusão de progresso. Getting Killed implora o tempo todo. em Cobra, você pode ficar na minha casa pra sempre. em Husbands, você não precisa perder o seu tempo. em Islands of Men, você não pode continuar fugindo do que é real. em Long Island City Here I Come, eu estou indo — mas também, sinceramente, ninguém sabe pra onde está indo. Getting Killed provavelmente choraria na minha frente e eu não saberia o que fazer. um colo não resolve quase nada, e metade das coisas são reais. eu já fui um carro e agora eu sou uma estrada. e aí, o que se faz com isso?
Heavy Metal já aceitou o que aconteceu. Heavy Metal conheceu quem ele vai se tornar e ele meio que é um cuzão. parece que substituir uma guitarra por um piano levemente desafinado te faz sentir coisas diferentes e pensar em coisas que não seriam pensadas com um instrumento de seis cordas. em Cancer of the Skull, eu escreveria uma ótima carta. em We’re Thinking the Same Thing, estamos fazendo exatamente isso mas estamos cansadas demais pra virar o volante. em Nina + Field of Cops, eu me sinto uma idiota. é sobre se sentir sem valor monetário, mas pelo menos um zero é uma das maiores certezas que você pode ter. algarismo abençoado e amaldiçoado. ou já terminou ou ainda nem começou. você só precisa decidir qual dos dois e seguir em frente. Deus existe, e dessa vez eu não estou brincando. dessa vez é sério. e aí, o que se faz com isso?
já passamos por um verão de Cameron Winter, um outono de Cameron Winter, um inverno de Cameron Winter e estamos vivendo, neste exato momento, o início de uma primavera Cameron Winter. uma primavera-revolução, mas sem nenhum sentido bíblico. talvez se torne violento em algum ponto, talvez estejamos sendo mortos nesse exato momento, talvez um metal muito forte caia sobre nossas cabeças uma hora. ou talvez você só pague seus impostos e Brian Jones morra afogado mais uma vez. é como eu já falei; qualquer coisa eu te aviso.
✍️falou tudo