felizmente ou infelizmente, cursos de graduação em Artes Visuais e pessoas inteligentes em geral conseguiram virar o jogo nos últimos anos e podemos dizer que, em 2023, muita gente concorda com a afirmação de que qualquer coisa pode ser arte. claro, sempre existirão os conservadores que acreditam na Arte como sendo uma escultura renascentista ou nada mais que uma pintura estranhamente bem-feita de Jesus jantando do lado do Bolsonaro, mas as pessoas que importam já estão cansadas de saber que gravar oito horas ininterruptas do Empire State Building ou colocar uma assinatura em uma pá de neve que você comprou é a coisa mais arte que existe ou vá existir em toda a história.
o único problema é que toda essa mudança de paradigma nos últimos 100 anos acabou criando um precedente perigosíssimo: agora, a Manu Gavassi acha que é artista.
única, ousada, inovadora, contemporânea, se bobear até mesmo revolucionária. na última semana, a bolha online de pessoas cuja existência se resume em passar o dia comentando tweets da BCharts e chamando cantoras que não são a Taylor Swift de cadela entrou em polvorosa ao assistir um vídeo postado pela cantora/fada sensata/atriz/paulistana/influencer/compositora em negrito Manu Gavassi, conhecida por uma participação semi-experimental e disruptiva no reality show Big Brother Brasil, exibido no horário nobre da maior rede de televisão da América Latina — e por semi-disruptiva e experimental, eu quero dizer que ela gravou uns vídeos antes de entrar na casa que fizeram sucesso em uma bolha online de pessoas que passam o dia comentando tweets da BCharts e fazendo coisas com o seu tempo que não agregam valor à humanidade, nem a si próprios, nem a qualquer cantora que não seja a Taylor Swift
e para essas pessoas, boa notícia: a Manu Gavassi gravou um vídeo. Programa de Proteção à Carreira Artística é um esquete do Zorra — não do Zorra Total, preste atenção — criado, roteirizado e dirigido por Manu Gavassi, a artista. basicamente, ele é o que acontece quando você assiste um episódio de Black Mirror e acredita ter o que é necessário para fazer uma crítica contumaz ao sistema que você própria se beneficia e se beneficiará todos os dias da sua vida — porque só em um cenário pop tão fragmentado e tão medíocre quanto o que vivemos no Brasil atualmente é que haveria lugar para uma artista produzir algo tão ordinário e ser classificada como a salvação do nosso pop.
Manu Gavassi é um ser humano incapaz de salvar qualquer coisa. talvez ela seja valente o bastante para conseguir salvar um cachorro se afogando em uma piscina; não conheço ela pessoalmente para conseguir avaliar sua personalidade e o que ela faria em tal situação. mas qualquer coisa relacionada à arte, à música, ao audiovisual? impossível. não tem nada dentro dessa alma além de um desejo intenso de querer parecer transformadora e uma leve pitada de coitadismo. a Britney Spears nunca precisou se fazer de coitada para fazer sucesso comercial ou ser amada pelos críticos: ela só precisou produzir músicas boas. é como se Manu Gavassi tivesse vergonha de ser uma artista pop, e isso é a pior coisa que você pode ter caso almeja ser uma artista pop. é como querer trabalhar numa refinaria mas ter medo de mar, nojo de colocar a mão no petróleo e um amor intenso à sua família
Programa de Proteção à Carreira Artística traz as críticas mais superficiais possíveis à indústria pop brasileiro do ano de 2023. Manu Gavassi — criadora, roteirista e diretora — passa a maior parte dos seis minutos e 43 segundos de duração tecendo comentários rasos e vazios sobre dancinhas de TikTok, marketing negativo, exposição da vida pessoal de artistas e tudo mais que assola o nosso país. e é inacreditável como não há uma linha de diálogo nesse vídeo todo que não pareça ter sido escrita em um momento de profundo ódio e ressentimento
Manu Gavassi acredita que é melhor que todas essas Luísas Sonzas fazendo sucesso no país, e o fato de não ser ela no topo das paradas ao invés do novo agrohit de Ana Castela é a prova de que as pessoas não entendem o que ela quer dizer, mesmo tudo sendo tão mastigado que eu me vejo achando as suas obras geniais caso eu tivesse 12 anos de idade e nenhuma noção de como funciona o mundo. é uma grande introdução ao conceito de indústria cultural. se você nunca ouviu falar que existem gravadoras que buscam fazer dinheiro com música, esse vídeo é ótimo pra você. e o melhor de tudo? você pode rebater as críticas simplesmente dizendo que o Pedro Bial gostou do que você fez. isso automaticamente te torna imune a qualquer comentário negativo. afinal, o Pedro Bial é o homem mais inteligente do Brasil. nunca viu um texto de eliminação do Big Brother? ele usava palavras.
mas o principal motivo pelo qual Manu Gavassi criou, roteirizou e dirigiu tudo isso foi para fazer aquilo que todo artista faz e que, dependendo da sua interpretação, pode ser visto como algo negativo. ela queria promover sua nova canção.
Pronta pra Desagradar é um revival do swing revival que assolou o mundo nos anos 1990 no qual Manu Gavassi constantemente aponta que ela está, sim, pronta pra desagradar — o que é exatamente o oposto de tudo que ela mostrou até agora na carreira. se tem uma coisa que ela não está pronta, é pra desagradar. de jeito nenhum. o que ela menos quer no mundo é desagradar qualquer pessoa, inclusive. ela precisa ser respeitada como artista a qualquer custo, e se não for respeitada, ela vai escrever outra música sobre não ser respeitada. não se surpreenda se nos próximos meses você encontrar a canção Pronta pra Desagradar 2: Dessa Vez é Sério na sua plataforma digital favorita
e o videoclipe de Pronta pra Desagradar é a maior prova disso tudo: com 11 minutos de duração, ele é uma semi-fábula sobre o quão incompreendida e sofrida Manu Gavassi é. existe uma cena de dois minutos na qual ela bate foto com um hater de Twitter na rua — interpretado pelo comediante pró-Pfizer Esse Menino, o Manu Gavassi gay cisgênero. ela entra em um táxi em determinado momento e o motorista é ninguém menos que Tim Bernardes, que canta Desafinado junto com ela. Manu Gavassi entra em uma audição para atriz e a Pitty está lá. é uma série de cenas desconexas cujo propósito é fazer com que o público aceite Manu Gavassi como uma artista séria, de todos os jeitos possíveis. “eu conheço o Tim Bernardes, eu conheço a Pitty e eu preciso que você me respeite. por favor, olha nos meus olhos. eu estou pronta pra desagradar. mas eu não quero. se isso acontecer, eu não respondo pelas minhas ações.”
eu acredito que o problema, desde o início da carreira, é que Manu Gavassi é uma artista equivocada. o videoclipe/curta-metragem de Deve Ser Horrível Dormir Sem Mim é uma das obras mais deprimentes da música brasileira nos últimos 50 anos, toda a sua participação no Big Brother envelheceu feito leite e as melhores coisas que ela já produziu foram aquelas canções do início dos anos 2010 pela Capricho — porque lá, pelo menos, não havia pretensão alguma. era música pop, ela sabia que era música pop, todo mundo sabia que era música pop e não tinha problema algum. mas a partir de certo momento da jornada, ela quis se desprender de todo jeito possível dessa imagem de ex-colíria — e ela tem todo o direito de fazer isso, assim como eu tenho todo o direito de achar tudo isso uma besteira sem tamanho.
Manu Gavassi acredita ser genial porque é isso que suas amigas ilustradoras de Instagram lhe dizem nas DMs. as publicitárias em seu círculo social olham em seus olhos e falam, com toda a sinceridade do mundo, que ela é incrível. a família dela acha tudo que ela produz genial. para algumas pessoas, isso já é o suficiente.
a única música boa de verdade que existe no mundo é essa aqui.
esse arco da manu é o próprio suquinho de realismo capitalista
Perfeito.