eu destruirei vocês #114: sorriso metálico
os piores desenhos da minha infância e uma cidade fantasma
um sentimento muito comum entre jovens com mentalidade de velho & velhos com mentalidade de velho é o clássico “na minha época é que era bom”. uma nostalgia tão forte pelos tais bons tempos que beira o saudosismo fascista: homens que acreditam que a geração de hoje é fraca por nunca ter assistido desenhos animados tenebrosos do calibre de He-Man e os Defensores do Universo ou Caverna do Dragão. como se, hoje em dia, qualquer desenho que exista não tivesse ao menos uma caverna com um dragão
e se todas as suas opiniões sobre arte são advindas de páginas do Facebook chamadas Saudades Anos 80, é muito fácil cair nessas armadilhas e pensar que a sua infância foi muito melhor do que as das crianças de hoje só porque você brincava na rua e apanhava dos pais. eu, porém, sou completamente diferente. eu jamais pensaria algo assim. eu tenho plena consciência de que a minha infância foi uma das piores eras dos desenhos animados de todos os tempos
eu fui uma criança que conseguiu pegar apenas o finalzinho da era clássica do Cartoon Network — eu só senti um gostinho dos Laboratório de Dexter, A Vaca e o Frango e Eu Sou o Máximo da vida, alguns dos desenhos animados mais icônicos já criados na face da terra. em determinado momento, eu fui obrigada a presenciar uma transição altamente deprimente para uma nova era dos desenhos animados. basicamente, existe um motivo pelo qual Hora de Aventura é considerado atualmente como o programa que reviveu o Cartoon Network. é porque a situação do canal em meados dos anos 2000 era patética
é sério: basta comparar a programação do Cartoon no dia 31 de janeiro de 2002 x o dia 15 de março de 2006 — cortesia do antigo site da Folha de S.Paulo que milagrosamente ainda continua no ar
ridículo. enquanto o meu eu de 6 anos de idade conseguia apreciar obras de arte do naipe de Coragem, O Cão Covarde e Sailor Moon: Super S, aos 10 anos de idade eu precisava aguentar coisas como Betty Atômica, Duelo Xiaolin e Mucha Lucha. o dano que assistir esses desenhos animados descartáveis causou na minha psique talvez jamais poderá ser mensurado: era uma época em que eu não podia simplesmente abrir o YouTube e assistir qualquer episódio de As Meninas Super Poderosas que eu quisesse. era tudo muito complicado. se eu não quisesse ver Se Liga, Ian, o melhor a se fazer era desligar a televisão e ir brincar na rua — o meu maior pesadelo. faz muito sentido que foi nessa época em que eu comecei a assistir quase que exclusivamente DVDs de Simpsons alugados na finada Vídeo Beta
sempre que eu lembro dessa era do Cartoon Network, duas coisas me vêm à mente: uma depressão extrema & Jacó Dois-Dois — um desenho que se tornou praticamente um símbolo da tristeza que eu sentia toda vez que ligava a televisão para assistir algo divertido. é uma obra canadense, o que já é um sinal da baixa qualidade do produto — esse é o mesmo país que nos deu em um período de poucos anos Johnny Test e Seis Dezesseis. eu não lembro quase nada da história de Jacó Dois-Dois, mas eu me lembro dos sentimentos. era um desenho com um traço horrível que me deixava melancólica só de olhar. backgrounds básicos e sujos com cores muito feias, personagens sem carisma algum e histórias genéricas sem propósito. um Seinfeld, só que ruim
assistindo um episódio de Jacó Dois-Dois depois de duas décadas, tudo que eu me lembro do desenho está corretíssimo — o meu eu de dez anos de idade realmente era parecido com quem eu sou hoje. esse é mais um programa com a tal premissa da criança que não é ouvida por ninguém — ele se chama Jacó Dois-Dois porque sempre precisa repetir tudo que fala mais de uma vez. seus irmãos não o ouvem, seus pais não o escutam e muito menos o gordo diretor de sua escola, o Pança Gulosa. ele não gosta da sua professora, a qual chama de Professora Azedina. pra mim isso é um caso clássico de desenho animado que foi criado cinco minutos antes da reunião de pitch. se eles realmente pensaram nessa premissa por mais do que esse tempo, putz
e é preciso ser dito: vocês estão todos cegos pela nostalgia. o Jetix era um canal horroroso. eu infelizmente fui amaldiçoada com o traço de personalidade fã de Padrinhos Mágicos — era meio que de longe o meu desenho animado favorito quando eu era uma criança sozinha morando em um sítio. e eu digo amaldiçoada pois isso significava que eu regularmente assistia a programação do Jetix esperando o meu programa favorito passar, e é incrível como absolutamente tudo naquele canal era podre e fétido
talvez aqueles desenhos simplesmente não eram pra mim, mas eu me recuso a acreditar nisso. não era um simples “ah, não gosto desses programas”: era um ódio extremo a qualquer coisa não relacionadas a fadas nesse canal. Sorriso Metálico, o desenho sobre uma pré-adolescente com aparelho no dente que é dublada pela Mariana Ximenes? absurdo. eu não me lembro de absolutamente nada de Fillmore exceto pelo fato de que eu o odiava. as trinta e oito temporadas diferentes de Power Rangers? eu quero me matar
e eu entendo que pra um certo tipo de pessoa — garotos — essa programação provavelmente era incrível, mas se tinha uma coisa que eu odiava quando era criança era desenhos de ação e aventura. nunca gostei de Avatar, achava Beyblade chatíssimo, o máximo que eu conseguia aguentar era Martin Mystery — e se você olhar a programação do Jetix, ela era lotada de desenhos não-engraçados. Shaman King, Code Lyoko, Medabots… nada disso me faz rir, que é o único propósito de um desenho animado.
parece que vocês não entendem que a maior aventura de todas é a vida…!
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nessa edição #X31, escrevi sobre os fofíssimos bonecos da Sylvanian Families e suas variantes menos conhecidas & dei algumas sugestões de naming rights para o estádio do Criciúma Esporte Clube. é inevitável
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a falta de solidez
uma cidade fantasma
quanto mais eu cresço, mais eu percebo que não existe nada igual a Grand Theft Auto: San Andreas.
você conhece GTA: um game cujo único propósito é incendiar carros com um coquetel molotov bem atirado e atacar pedestres inocentes com uma minigun. se você for uma pessoa idosa talvez até decida em algum ponto da vida jogar as missões, mas não existe uma criança sequer no mundo que faz, fazia ou fará isso. o modo correto de jogar GTA: San Andreas é entrando na sua lan house de preferência, clicando no ícone do game e imediatamente digitando o código ROCKETMAN para ganhar acesso a um jetpack que te leva a qualquer lugar. todo o resto que o jogo te disponibiliza nada mais é que um bônus. a carne é isso. o resto é só osso
mas acima de tudo, talvez a experiência mais aterrorizante que eu já tenha vivido enquanto jogava um videogame foi com San Andreas. em 2007, eu fascinada por esse jogo: já tinha baixado um save 100% completo que me dava acesso a todos os carros, armas e locais ao mesmo tempo em que conhecia todos os cheats relevantes de cabeça — se eu quisesse uma bazuca, eu tinha acesso instantâneo àquilo. mas é como se algo faltasse, mesmo não faltando. blogs misteriosos me diziam que existiam coisas além do que eu conhecia, e isso fazia com que meus olhos brilhassem. a maioria das pessoas sente isso com religiões organizadas: eu sentia com os mistérios do GTA.
se você usa o código do jetpack dentro da academia Ganton, localizada em Los Santos, e usa o aparelho em um determinado ponto do local, você adentra um mundo misterioso intitulado Hidden Interiors Universe. basicamente, a coisa mais assustadora do mundo: um universo totalmente preto no qual de vez em quando você consegue avistar uma seta amarela, que indica a possibilidade de você entrar em um prédio. no meio da vasta escuridão, um alívio. você invade o espaço e encontra uma loja Ammu-Nation de dois andares que nunca aparece em nenhum momento do jogo. seja bem-vindo
existem mais de 152 locais no jogo que você consegue visitar navegando pelo universo, um lugar enorme no qual se perder é mais fácil do que se encontrar — até porque está tudo escuro e ninguém tem uma lanterna. de vez em quando, voando pelo espaço, você encontra exteriores que até aparecem em certas partes do jogo, mas são praticamente inacessíveis, tipo a versão parcialmente sólida de Liberty City. hoje em dia eu entendo que o único motivo pelo qual eu jamais conseguiria trabalhar desenvolvendo jogos 3D é porque visitar esse lugar pela primeira vez aos 11 anos de idade foi algo que me traumatizou
acredito que o grande problema é que, ao chegar em Liberty City no GTA: San Andreas, as coisas parecem relativamente normais. essa localização é usada apenas em uma missão em todo o jogo, e você nunca chega a explorar a cidade em si. ela aparece em uma cutscene no início e logo em seguida você é desovado em um restaurante, no qual precisa matar alguma pessoa supostamente importante para prosseguir com a história. nesse jogo, Liberty City é elusiva. você nunca consegue acessá-la por meios normais e você nunca consegue dirigir pelas ruas da cidade tal qual você fazia em GTA III. ela é um ideal inalcançável. ela é tudo que eu sempre quis, e agora eu não quero mais
o problema é o seguinte: quase nada nessa cidade é sólido. você consegue dirigir o seu carro ou caminhar a pé por alguns poucos momentos, até que o inesperado ocorre — ao menos inesperado para uma criança que ainda não conhece o mundo. eventualmente, você irá cair. você estará andando e seu personagem passará direto pelo chão que você acreditava possuir alguma resistência, como a maior parte dos chãos nesse jogo possui. como um bebê que é deixado a sós por alguns minutos sem nenhum contato humano ou familiar, seu personagem sente-se como se estivesse caindo para sempre. pois ele está. a sensação de segurança era falsa. nada te protege de algo assim. ele caiu pelo chão, e a única coisa que pode te salvar é o ALT + F4. muitas vezes a vida também é assim
e como você consegue manter sua confiança no mundo e nas pessoas quando aquilo que você acreditava ser uma base se mostra frágil, vazio? é impossível. mas tudo bem: hoje em dia, existem mods que transformam Liberty City em uma cidade sólida na qual você pode caminhar.
Amei tudo, e lendo sobre "esse passado mágico" eu lembrei de outra coisa muito associada a isso. Eu juro que vou tentar ser o mais sintético possível porque acho que ficaria HORAS falando sobre como ODEIO o que chamo de "o mercado da nostalgia".
Pra começar, eu acho absurdo demais existir um canal do YouTube que já virou uma marca (uma marca!!!) com produtos próprios e programação há 10 ANOS (eu repito: MAIS DE DEZ ANOS) falando do que os roteiristas dele chamam de ~nostalgia~ É basicamente mais de dez anos falando do que seria essa suposta (e totalmente inventada) década de 80 (e que engloba coisas das décadas de 70, 90 e 2000, por mais absurdo que pareça).
Não consigo imaginar alguém com uma idade entre 20 e 40 anos de outras época sentindo tanta falta assim de produtos de mídia como as pessoas que, a partir da década de 2000, inventaram esses anos 80 aí. Por exemplo: nos anos 70 houve um pequeno revival dos anos 50 (por exemplo, filmes como Grease, a novela Estúpido Cupido etc). Mas até aí, normal. Fora que é normal (e muito saudável) curtir coisas de outras épocas, ainda mais quando foram importantes.
Mas esses anos 80 inventados são algo que virou uma marca, um estilo de vida. É absurdo demais. A pessoa achar que a infância foi DESTRUÍDA por causa de um remake de desenho??? Achar que crianças não tem infância hoje em dia porque não estão assistindo a um enlatado internacional em canal de tv?? Achar que tudo ficou ruim e que a sociedade caminha para a destruição moral*
É claro que algumas coisas relamente perderam (ou diminuiram) de qualidade, mas são N fatores, não é que na maravilhosa época inventada da infância fosse tudo melhor. Por exemplo: a indústria alimentícia de fato cria e recria fórmulas para alimentos ultra-processados para lucrar mais e isso altera diretamente a qualidade dos alimentos. Eu gosto de novelas, e de fato acho que as antigas eram melhores (bem melhores), mas não é porque era uma época "magica". Os elencos eram melhores pois não havia mercado para os atores (o teatro e o cinema não eram como hoje, isso limitava as opções de trabalho), havia mais audiência, a televisão era um meio muito forte o que conferia mais atenção às produções, havia toda uma questão com as trilhas sonoras (as emissoras eram mais ativas no mercado fonográfico) e muitos outros fatores.
Aí, por exemplo, se eu curto um filme, uma banda, uma novela ou qualquer coisa da década de 80, automaticamente essa mídia perde a suas características pra virar algo ~da década de 80~. Escrevendo eu também lembrei de que uma vez um colega criticou um vídeo desses de "tive uma infância feliz" que mostrava, ao som de "Unidunitê" do Trem da Alegria, coisas que supostamente seriam da década de 80. Haviam coisas ATÉ DA DÉCADA DE 2000 (como desenhos, brinquedos), haviam brincadeiras que devem existir desde a década de 60 (no mínimo). Mas era ~nostalgia da década de 80~ ~uma infância feliz~.
*eu não tô brincando, uma vez, fiz um comentário elogiando uma cena em que atuavam Glória Menezes e Cleide Yaconis, na novela Rainha da Sucata (detalhe que eu nem acho a novela tão boa, mas gosto do elenco); alguém, não sei como, falou que concordava comigo e que a sociedade caminha para a DESTRUIÇÃO DO OCIDENTE já que tudo piorou, tudo perdeu a qualidade (eu até apaguei meu comentário, eu juro que fiquei: COLEGA, É SÓ UMA NOVELA, SABE???)
jetix era sim HORRENDO mas eu ouso dizer que quando virou disney XD ficou até pior — o nome XD me dá calafrios. se fosse disney :3 talvez seria bom.