a programação televisiva no sábado de manhã sempre foi relativamente misteriosa. quer dizer, é fácil descobrir o que vai passar: você pode abrir o seu jornal impresso de preferência na seção de variedades e encontrar qual desenho bíblico a Record exibirá, procurar na internet quais horários alguma igreja evangélica comprou na sua afiliada local da Bandeirantes, ou apertar um botão no seu controle remoto que magicamente mostra se a Rede Vida vai passar Capivariano versus Velo Clube ou outra partida da série A3 do campeonato paulista. mas é impossível negar que tudo isso, mesmo fazendo parte de inúmeros cotidianos, possui uma fortíssima e impenetrável aura esotérica
é um pouco relacionado com o ato de assistir televisão cedo demais. todos os canais da televisão aberta parecem operar em uma lógica diferente entre as duas e as seis da manhã. é como se eles estivessem ativamente forçando você a ir embora. no fundo, a Rede Globo não quer que você perca tempo assistindo a aula 63 do curso de língua portuguesa — ensino médio do Telecurso 2000 onde você verá mais dois tipos de orações subordinadas adverbiais: a condicional e a concessiva. eles só querem que você tenha uma ótima noite de sono para assistir os programas de verdade que passarão durante o dia. apesar da presença ilustre de Bemvindo Sequeira e um Antônio Fragoso pré-Zorra Total, o Tecendo o Saber não era um programa de televisão de verdade. o Zorra Total, incrivelmente, era. todo mundo sabe que o mundo não é justo
em 2015, a Rede Globo de Televisão decidiu que os sábados de manhã precisavam de um programa de verdade. após anos do domínio tirânico de uma autocrática TV Globinho e suas incessantes reprises de Em Busca do Vale Encantado XIII – A União dos Amigos, o óbvio se tornou evidente para todos: apesar dos gritos e berros online de adultos que parecem necessitar manter eternamente algum resquício da sua infância ao seu redor, reprise de desenho animado não dá dinheiro algum. o Encontro com Fátima Bernardes com Patrícia Poeta existirá para todo o sempre. e principalmente, milagrosamente, o É De Casa é eterno
desde a sua primeira fase, iniciada em 2015, o É De Casa é um programa cujo propósito é existir. nós precisamos lucrar mais no horário de sábado de manhã, portanto, criaremos o É De Casa. nós temos seis apresentadores diferentes que estão sem programa atualmente e precisam de um espaço na programação, portanto, Cissa Guimarães, Zeca Camargo, Patrícia Poeta, André Marques, Tiago Leifert e Ana Furtado apresentarão o É De Casa. temos centenas de repórteres espalhados por todos os cantos do Brasil mas eles só fazem reportagens interessantes para os seus jornais locais, portanto, eles aparecerão no É De Casa. acima de tudo, o É De Casa era, é e sempre será uma oportunidade. colocaremos essas pessoas para falar sobre coisas aleatórias durante o sábado de manhã e torceremos pelo melhor. e que Deus tenha piedade dessa nação
nesse sábado, dia 20 de julho de 2024, foi ao ar mais uma edição completamente normal do É De Casa. toda edição completamente normal do É De Casa inicia no horário mais absurdo, catastrófico e inexplicável possível: seis e cinquenta da manhã. não há no mundo algo que inicia às seis e cinquenta da manhã de um sábado — além do É De Casa. toda edição completamente normal do É De Casa possui um tempo de produção de quatro horas e quinze minutos. são quatro horas e quinze minutos de um programa ao vivo em um sábado de manhã. mas sobre o que diabos eles falam nessas quatro horas e quinze minutos? eu também não sei. quer dizer. eu não sabia. eu assisti uma edição inteira do É De Casa.
e claro, tem algo muito besta em agir como se assistir um programa de televisão fosse uma tarefa homérica, herculana — mas eu quero que você entenda que o É De Casa não é um programa feito para você assistir. sentar no sofá e assistir uma edição inteira do É De Casa é uma tarefa quase impossível, e muito pelas circunstâncias do que é um sábado de manhã. você não assiste televisão em um sábado de manhã. você está com a televisão ligada. é uma distinção importante. você passa tempo com a sua família em um sábado de manhã. você conversa com entes queridos, você prepara um almoço especial, você até mesmo aproveita o momento de folga para ir ao supermercado, à feira, na mercearia da esquina. você dorme. você não vai, em hipótese alguma, passar quatro horas e quinze minutos na frente de uma televisão. você vai viver
mesmo assistindo uma edição inteira do É De Casa — edição essa completamente normal, diga-se de passagem —, eu não sei exatamente sobre o que é esse programa. apresentado atualmente pelo relutantemente carismático quarteto Maria Beltrão, Thiago Oliveira, Talitha Morete e Rita Batista, o É De Casa é composto por várias coisas. é difícil chamar tais coisas de quadros. o É De Casa é quase um programa improvisado: as coisas acontecem abruptamente, até o momento em que a misericordiosa mão de Deus decide que elas deixarão de acontecer.
Mariana Santos confessa que foi relapsa com as suas plantas de casa. um quadro de jardinagem apresentado por um especialista em plantas que convida famosos para tirar as dúvidas relacionadas ao cultivo, plantio e manutenção dos vegetais. Eliane Giardini conversa sobre os cuidados com as suas bouganvillieas, gênero botânico da família Nyctaginaceae. bativas da América do Sul, essas angiospermas recebem vários nomes populares, como primavera, três-marias, juá-francês, sempre-lustrosa, santa-rita, ceboleiro, roseiro, roseta, riso, pataguinha, pau-de-roseira e flor-de-papel. isso vai durar vinte minutos e o seu cérebro desligará completamente em um oitavo do caminho
e é isso que o É De Casa é: ruído branco. um grande, colossal e absoluto nada. um som distante de pessoas falando na televisão da sua sala de estar. em toda edição, há uma participação especial do sul-catarinense Rodrigo Hilbert com o seu clássico Tempero de Família — trinta minutos de um homem cozinhando, mas ao menos o homem é carismático e bonito. o problema verdadeiro é o mero fato de ele existir dentro do É De Casa. Tempero de Família é um programa do GNT. ele está meramente sendo cortado, editado, revisado, revisionado e exibido na televisão aberta. é uma reprise. ele existe para preencher tempo. em um programa de quatro horas e quinze minutos. belíssima paçoca de mandioca no vapor com carne seca, Rodrigo Hilbert. pena que isso não vai te salvar no final
em determinado momento, Michelle Loreto aparecerá na sua televisão como quem não quer nada e começará a falar sobre os cuidados que você precisa ter em casa para evitar acidentes domésticos — quedas e engasgos são os mais comuns. um repórter produzirá uma matéria mostrando como crianças podem cair em boxes de banheiro e quebrar a cabeça, tomar remédios aleatórios que encontram pela casa e se lambuzar com óleo quente em uma frigideira que está com o cabo virado pra fora. ela irá embora, e voltará duas horas depois falando sobre os perigos da obesidade. aqui você já conseguiu preencher mais 45 minutos
É De Casa é a vida destilada. um garoto autista com um talento único é convidado pelo maestro João Carlos Martins para reger uma orquestra. em um quadro intitulado Mona York, a repórter Mona Lisa Duperron mostra os diferentes aspectos da cultura nova-iorquina para os brasileiros — essa semana, vamos ver como é o cachorro-quente na cidade. descobriremos o que faz uma madrinheira nas festas de peão — elas guiam e cuidam dos cavalos. no quadro Janela do Brasil, chamaremos um repórter diretamente da Chapada dos Guimarães para mostrar a maior mandala do mundo. ele está em um balão. você não imagina o quão feliz eu estou por ele.
e aí fica o questionamento: um programa de televisão precisa ter uma função? eu preciso aprender alguma coisa assistindo uma novela? quando eu ligo a televisão para ver o show de calouros do programa do Ratinho, eu sou obrigada a sentir algo no coração? assistir o Balanço Geral vai agregar algo ao meu ser? o Conversa com Bial vai mudar a minha vida? a Ana Maria Braga é minha amiga pessoal? o William Bonner me ama?
não tenho respostas. eu sei, porém, que os atores mirins da novela Família é Tudo aprenderam ao vivo, no último sábado, a fazer um bolo de chocolate. e às vezes, isso é tudo que precisamos
o nome dele é Johnny! não, não sei qual é o nome dele. não sei se ele tem nome.
valorizo os horários da tv aberta da manhã que ainda não foram vendidos pra igreja. o é de casa é resistência!
quando eu acordava cedo no fim de semana pra assistir desenho na tv cultura lá nos anos 2000, eles tinham dois programas sobre música: Viola Minha Viola e Senhor Brasil. saudades