eu destruirei vocês #139: a estrela de uma casa
o primeiro reality musical de confinamento do mundo
nós podemos nos enganar e acreditar que somos um povo cheio de paixões, mas no fundo, bem lá no fundo, bem em seu núcleo, o brasileiro ama apenas duas coisas: reality shows musicais e reality shows de confinamento. em um país cujas maiores estrelas são o cantor-ex Fama Thiaguinho e a irmã do ex-campeão do Big Brother Brasil Davi Brito, a sensação é que todas as nossas vidas giram em torno desses dois conceitos — com intensidades variadas, claro
no começo dos anos 2000, toda criança e adolescente que se preze — ou prezava — parava na frente do SBT no fim das noites de quinta-feira para assistir candidatos que acreditavam cantar bem sendo sumariamente humilhados por Arnaldo Saccomani ao vivo — e à cores. era uma época em que a maldade reinava nos programas de televisão aberta — alguns dias depois, você poderia ligar na RedeTV! e assistir um homem imitando o Sílvio Santos praticando assédio moral e perseguição contra alguma celebridade escolhida como alvo do trimestre. calce imediatamente as sandálias da humildade, Cazé Peçanha. algumas horas antes, você ligava a TV Globo e lá estava Evelyn Castro levando a medalha de prata na quarta edição do Fama. eram tempos muito estranhos. Ana Paula Padrão apresentava o Jornal da Globo, e era noite em meu coração
e enquanto isso, nesse mesmo dia, você tinha a oportunidade única de assistir uma formação de paredão com Jean Wyllys, Grazi Massafera e outras pessoas certamente menos relevantes e com menos indicações ao Emmy Internacional. época de Casa dos Artistas, que teve seu conceito completamente roubado pela Rede Globo de Televisão décadas depois resultando na catástrofe que foi a volta de Manu Gavassi à relevância — ou ao menos algo parecido com uma relevância. o Brasil conheceu Nego Di? coitado do Brasil. Karol Conká é a mulher mais odiada nos 26 estados mais o Distrito Federal? nem é mais. agora eles odeiam outra pessoa. em breve vão odiar até a Chappell Roan. a sua hora vai chegar
mas imagine algo novo. algo que mistura a musicalidade de um reality musical com o confinamento de um reality show confinamental. sim, acredite. está acontecendo. chegou o Estrela da Casa
nova aposta da Globo para o segundo semestre do ano — também conhecido como um semestre sem Big Brother Brasil —, o Estrela da Casa é o substituto do fracassado e desmoralizado The Voice Brasil, assim como o fracassadinho e desmoralizadinho The Voice Kids. mas ele também, sinceramente, é o substituto de várias outras coisas. ele toma o lugar de qualquer programa que a TV Globo tenha tentado inventar nos últimos tempos para o final de suas noites e que não deu certo — é a execução via cadeira elétrica de Os Melhores Anos das Nossas Vidas, um fuzilamento no reality culinário Mestre do Sabor, uma hipóxia por nitrogênio no seriado Cidade Proibida. estão todos mortos, vida longa ao Estrela da Casa. assim que vendermos todas as cotas de patrocínio, o planeta Terra inteiro será nosso
é. é um reality show musical, e é um reality show de confinamento. no Estrela da Casa, 14 músicos dos mais variados gêneros — musicais — são enfiados em uma casa e precisam sofrer diariamente com dinâmicas diferentes que mudam ao desenrolar do jog- olha aqui, me desculpa. é completamente impossível falar sobre esse reality show sem mencionar constantemente o Big Brother Brasil. é o que ele almeja ser em todos os sentidos — comerciais, artísticos, ibopísticos — e não adianta fingir que não. o Estrela da Casa tem suas próprias dinâmicas, preceitos, sua própria terminologia… mas no fundo, ele é um Big Brother Brasil. só que agora tem músicas, e é no horário do The Voice Brasil
aqui no Estrela da Casa, não tem paredão nas terças-feiras. aqui tem a batalha. ocorrida toda terça-feira, ela é formada pelo participante indicado pelo dono do palco — que é algo totalmente diferente do líder do BBB —, pelo participante mais votado pela casa — votação essa claramente sem nenhum paralelo em qualquer outro reality show da Globo — e pelo participante perdedor do duelo — que realmente é uma coisa que meio que não existe no Big Brother Brasil. quer dizer, é quase uma prova bate-volta, se você for analisar. é. talvez nada se crie mesmo
e meio que tudo nesse programa é assim. a sensação é de você estar sempre assistindo um programa parecido demais com o Big Brother Brasil. é como se ele habitasse um uncanny valley televisivo. os participantes estão cozinhando e comendo no mesmo local em que os participantes do Big Brother Brasil cozinham e comem — é a mesma casa, é o mesmo estúdio, é a mesma vivência. é preciso ao menos tentar desligar a parte do seu cérebro que entende que esse lugar é onde há apenas alguns meses habitavam MC Bin Laden, Leidy Elin e a atriz Alane Dias.
o Estrela da Casa é uma fac-símile de Big Brother Brasil. uma forma de vida amorfa, uma gosma gelatinosa que tenta se assemelhar a uma outra coisa mas que não é. não que isso seja ruim, eu acho. mas eu sinto que estou enlouquecendo quando assisto Estrela da Casa. isso já aconteceu comigo algumas vezes ao assistir o horário nobre da Rede Globo, principalmente em algumas novelas do Aguinaldo Silva, mas agora talvez minhas faculdades mentais estejam dando adeus para sempre
supostamente, a grande função social do Estrela da Casa é encontrar novos talentos. uma premissa pura de coração, diria até mesmo impactante, e que realmente parece ser levada a sério por todo mundo envolvido. ao contrário de outros reality shows musicais — os não de confinamento —, aqui a preparação dos cantores é meio que um dos focos do programa. lembra dos supostos técnicos do The Voice Brasil, que praticamente não faziam nada além de sentar por 5 minutos com os cantores do time pra gravar um VT e depois voltavam pra casa com o bolso cheio de dinheiro — até o bolso rasgar e espalhar notas de 100 reais pelo saguão do prédio onde eles moram? aqui é mais… íntegro
workshops de composição com Pretinho da Serrinha, acompanhamentos semanais com profissionais de canto para potencializar o seu potencial, palestras sobre quais alimentos fazem bem ou mal para a voz — você sabia que gengibre faz mal? não é algo superficial. é algo que faz parte do dia-a-dia na casa. é como se a Globo estivesse implorando para que algum desses artistas eventualmente se torne, bem, um artista, e não apenas um ex-participante do Estrela da Casa. essas pessoas não podem ter o mesmo destino de todos os vencedores da história do The Voice Brasil, senão o Boninho comete seppuku ao vivo
mas e aí? será que existe algum universo em que uma estrela da casa se torna uma estrela da música brasileira? de uma coisa eu tenho certeza: não faço ideia. por um lado, essas pessoas parecem estar sendo criadas em um laboratório para serem o mais palatável possível para o público, para o mercado publicitário e para programas de auditório da Globo. é um exército de robôs meticulosamente programado para nos dar o próximo hit do Carnaval. e isso pode parecer cínico ou péssimo, mas a gente precisa entender que absolutamente todas as estrelas da música pop meio que passaram pelo mesmo processo — só não estavam sendo gravadas vinte e quatro horas por dia. não há uma mega-estrela sem um media training, e não há uma estrela da casa sem um hitmaker
talvez os nossos artistas favoritos seriam péssimos participantes de um reality show de confinamento. a Dua Lipa provavelmente é meio sem-graça na vida real. se o Lou Reed tivesse entrado em algum’A Fazenda, ele seria o maior vilão da história do Brasil. o Sufjan Stevens seria planta em qualquer edição do Big Brother Brasil. Tom Waits não teria a capacidade de cativar o público de senhorinhas do sofá. mas de uma coisa eu tenho certeza: Kim Gordon e Thurston Moore arrasariam em um Power Couple
em suma, os participantes do Estrela da Casa estão constantemente cantando. é como se fosse uma casa inteira apenas com clones de Tiago Abravanel
será que o Geordie Greep se daria bem no Estrela da Casa? provavelmente não. pra ser sincera, eu acho que ele mataria alguém lá dentro
Amiga, eu gosto tanto da sua escrita!! Desde que li o texto discorrendo a ANITTA, fiquei ansiosa aguardando no meu email um novo artigo :) é muito leve e eu gosto demais das suas referencias -enfim, um ar pra respirar durante o expediente, obrigado
certeza que esse nome - péssimo, aliás - só foi aprovado porque Casa dos Artistas ia fazer o silvio santos voltar da morte pra estrangular o boninho