atualmente, infelizmente e assustadoramente, eu sou uma pessoa sem rotina. para muita gente, isso seria um sonho: todo o meu trabalho de assessoria de imprensa é feito por home office, sem eu precisar falar com qualquer outro ser humano na vida real — salvo raríssimas exceções — o que significa que, terminando minhas tarefas do dia, eu posso simplesmente fazer o que eu quiser. este o que eu quiser, porém, é meio que um mistério: eu não sei o que eu quero. eu posso ter alguns prazeres na vida, claro, como beber um latte ice de caramelo salgado enquanto leio uma coletânea de ensaios do David Foster Wallace em uma praça levemente arborizada de Criciúma, mas eu normalmente paro de ler após algumas páginas. fico furiosa demais com o fato de que eu jamais escreverei tão bem sobre quadras de tênis ou a feira estadual de Illinois. eu não fui na Agroponte esse ano, e minha tentativa de produzir um texto sobre a 25ª Festa do Colono, na cidade de Turvo, no sul de Santa Catarina, foi aos ares quando eu percebi que não tinha um carro para ir até lá. todo ano, eles fazem um arrancadão de tratores. é quando um monte de trator arranca ao mesmo tempo
isso é um dia comum na vida de Isabela Thomé. talvez ela irá ao supermercado porque não tem mais plástico filme em casa, talvez ela irá ao supermercado porque está muito triste e precisa gastar 30 reais com alguma coisa. um Monster de melancia sem açúcar não cura todas as feridas, mas talvez dessa vez cure. não sei se todo ser humano é assim, mas eu preciso de uma rotina. eu tenho fantasias recorrentes que incluem voltar a trabalhar em um escritório só para ser obrigada a passar pelo ritual diário de acordar, tomar banho, colocar uma roupa, beber um café, escovar os dentes e sair de casa. eu não tenho a capacidade de impor uma rotina em mim mesma. isso é complicado demais, e eu tendo a desistir de qualquer coisa muito complicada. férias me aterrorizam: como assim não tem ninguém mandando eu fazer nada?
por isso, às vezes, a melhor coisa que alguém pode é jogar videogame.
há alguns meses, quando o Twitter ainda existia no Brasil e todo mundo era mais triste, um post da conta HilltopWorks surgiu na minha timeline. na verdade, era mais uma sugestão: jogar Boku no Natsuyasumi 2: Umi no Bouken-hen durante o mês de agosto.
talvez seu primeiro contato com a série Boku no Natsuyasumi tenha sido através de uma breve menção na revista oficial do PlayStation em algum ponto de 2007, falando sobre o quão exótico este pequeno jogo de fazer nada era. ele era japonês, diferente, e sua mera existência ia contra tudo que tais revistas acreditavam. sem querer parecer uma nintendista ferrenha na luta contra os temíveis sonystas & caixistas, as publicações de games no Brasil nessa época se importavam praticamente apenas com God of War e Gears of War — qualquer coisa que não tivesse uma arma sequer era motivo de piada e chacota. não que a situação tenha mudado tanto assim nos últimos anos, claro: ainda existem pessoas que passam dias, noites e madrugadas discutindo online umas com as outras por causa de teraflops. pessoas que podem ser descritas como futuras donas de um PlayStation 5 Pro. Deus talvez terá piedade delas. eu não teria
Boku no Natsuyasumi pode ser descrito como minimalista — caso você acredite que não aconteça tanta coisa assim em uma vida humana normal. muita gente espera de videogames nada mais que um escapismo: “eu tive um dia muito estressante no trabalho, portanto preciso chegar em casa, ligar meu console e assassinar inúmeros monstros feios”. tudo bem, é um modo válido de viver a vida. eu prefiro buscar escapismo no álcool e drogas, mas respeito quem consegue encontrar em lugares mais tóxicos.
em uma tradução literal, Boku no Natsuyasumi significa My Summer Vacation — que em uma tradução literal, significa Minhas Férias de Verão. e meio que é isso mesmo: caso você jogue os quatro games da série, terá seguido um garoto japonês comum por quatro férias de verão. em Boku no Natsuyasumi 3: Kitaguni Hen: Chiisana Boku no Dai Sougen, você passa 31 dias na fazenda dos seus tios em Hokkaidō no ano de 1975. em Boku no Natsuyasumi 4: Seitou Shounen Tanteidan "Boku to Himitsu no Chizu”, você passa 31 dias em uma pequena cidade na costa japonesa no ano de 1985. em Boku no Natsuyasumi 2: Umi no Bouken-hen, você passa 31 dias com os seus tios em uma ilha. é agosto de 1975
cada dia em Boku no Natsuyasumi 2: Umi no Bouken-hen é um novo dia. você acorda, toma um café da manhã com os seus tios e primos e está livre para explorar a ilha. a partir desse momento, você pode escolher o seu destino: talvez hoje você visite a clínica e converse um pouco com o médico local e a enfermeira. converse com eles novamente daqui a dois dias e descobrirá que a enfermeira tem um encontro aquela noite. mais alguns dias e você saberá que o encontro não foi tão bem e que o médico anda meio depressivo. as duas coisas não tem relação. durante a noite, você pode visitar a clínica e encontrar uma garota misteriosa que não aparece durante o dia. ela canta uma música para você, e eu acho que ela não existe
tudo acontece pouco em Boku no Natsuyasumi, e é isso que o ser humano precisa de vez em quando. tem vezes que o grande evento do dia é simplesmente dar um nome a um rio. é quase impossível pra mim pensar em algo mais singelo, mais sensível, mais humano do que parar tudo que você está fazendo e escolher um nome para um curso de água. a ilha possui docas, e a mera presença de pessoas nas docas é algo que pode mudar o seu dia. ontem não havia ninguém lá, hoje há. ontem ninguém estava brincando no parque, hoje a Hikari, neta do médico, está girando no gira-gira. talvez amanhã ela vá te convidar para brincar no meio da floresta. e a vida é tão linda, tão bela, tão maravilhosa… que talvez ela não te convide
é a adição da rotina de um garoto japonês de dez anos à minha rotina. durante o mês de agosto de 2024, eu realmente fiz um esforço para transformar esses vinte minutos diários de exploração insular num agosto de 1975 em algo que fizesse sentido para mim. todos os dias preparando um café da manhã, ligando o computador, abrindo o emulador de PlayStation 2 e conversando com pessoas tridimensionais vivendo em cenários pré-renderizados. uma vida dentro de outra vida. talvez esteja chovendo na rua hoje, mas não está chovendo na ilha. talvez esteja chovendo na ilha, e eu esteja jogando isso com o sol na cara. talvez eu faça uma nova amizade hoje, talvez eu fique em casa o dia inteiro. talvez eu tenha novas experiências, talvez eu tenha novas experiências
é uma certa imprevisibilidade que deixa a vida menos chata. no segundo dia de jogo, após a chegada de Boku à ilha e a introdução dos personagens principais, você conhece Yasuko, uma adolescente que mora sozinha em uma linda casa. seu pai construiu a casa pensando em transformá-la em um observatório, mas faleceu antes de concluir o projeto. eventualmente, ela conta que existe uma porta na sala de estar que ela nunca conseguiu abrir. ela nunca encontrou a chave e não faz ideia onde poderia estar. vários dias depois, após a visita de uma mulher misteriosa, você encontra uma chave na casa dos seus tios. ela abre a porta
Boku no Natsuyasumi 2: Umi no Bouken-hen é belíssimo. um mundo sempre vivo. ontem não havia insetos nas árvores, hoje há. as minhas férias de verão normalmente consistiam em passar dois meses na Praia do Rincão explorando quartos e cômodos obscuros do hotel dos pais do meu melhor amigo. todos eles moravam no hotel, e uma das portas no segundo andar que parecia ir só para outro quarto servia como depósito dos brinquedos dele. eram muitos jogos de tabuleiro, bolas e uma bicicleta. uma vez ele me levou na cozinha do hotel. tudo era enorme. o PlayStation dele ficava no salão de festas e nós jogávamos Yu-Gi-Oh! Forbidden Memories. uma vez ele me deu o controle e eu demorei meia hora pra perceber que ele estava desconectado
eu não sei se dá pra considerar a Praia do Rincão uma ilha. ela é só uma praia. mas talvez seja uma fazenda. ou uma pequena cidade na costa japonesa
e agora, eu vou assistir mais uma vez.
como assim férias te aterrorizam? eu sou muito bom em tirar férias. acho que é a coisa que eu faço melhor no trabalho. rs
Amei, mas ainda não me recuperei da felicidade, meu único comentário é VOVÓ NINJA estreou <3