eu destruirei vocês #143: Rodrigo Faro vem aí
além de felicidade, um baú também pode guardar muitos segredos
caso você não tenha saído na rua nos últimos tempos e olhado para tudo a sua volta, saiba que vivemos em um mundo caótico. e não é nem porque tudo está pegando fogo constantemente e a chuva que cai do céu agora é preta; todas as profecias mais apocalípticas da Bíblia, de Nostradamus ou de correntes de e-mail do início dos anos 2000 já apontavam que isso era questão de tempo — e se a culpa disso tudo é de alguém, é sua por ter ignorado os apelos em PowerPoint da sua tia que mora em Braço do Norte. esse caos, ao menos, é mais fácil de perceber. é só abrir a janela que você sente ele entrando na sua casa. mas há um outro caos mais sinistro. um que não é tão fácil de notar. algo que não se encontra na superfície. como se houvesse alguém controlando o nosso universo que quer descobrir até onde podemos chegar, descobrir tudo o que podemos normalizar
olha, eu não quero mais ser misteriosa. eu acho que todo mundo é maluco, eu acho que estão querendo nos matar, e o Rodrigo Faro está interpretando o Sílvio Santos. é esse o nosso presente, e eu não vejo perspectivas melhores para o futuro
não sei, é como se já tivesse se tornado uma obsessão. desde o longínquo mês de abril de 2024, quando o primeiro trailer de Sílvio foi desovado nas redes sociais, eu não consigo parar de pensar em tudo que envolve essa produção. de vez em quando eu estou fazendo algo normal no meu dia, preparando um café da manhã ou dando uma volta na praça e o meu cérebro decide que é hora de lembrar da frase “meu nome é Senor Abravanel, o Sílvio Santos você deixa lá fora”. e o pior de tudo é que eu obedeço. afinal, eu sou refém do meu próprio cérebro. eu sou obrigada a relembrar, e eu sou forçada a pensar. não há um minuto de sossego, nem nunca haverá
é impossível assistir o primeiro trailer de Sílvio e não sair da frente do computador achando que você assistiu um trailer falso. se a RedeTV! não tivesse desistido da produção e ainda existisse um Saturday Night Live Brasil, a ideia de uma cinebiografia do Sílvio Santos estrelando Rodrigo Faro seria ótima: você estaria assistindo o programa num domingo à noite, daria uma ou duas risadas e continuaria com a sua vida. talvez a piada que você tenha achado mais engraçada seja a versão macabra de Sílvio Santos vem aí, olê olê olá que toca no trailer, algo tão absurdo em seu clichê que jamais poderia ser real. talvez é o fato do filme parecer extremamente cinza, como se não existissem cores em 2001. talvez seja a logomarca do filme, que por algum motivo usa cores e uma fonte parecidas demais com a da Sega. talvez seja Rodrigo Faro com maquiagem de velho. Rodrigo Faro sendo sequestrado com maquiagem de velho. Rodrigo Faro sendo sequestrado com maquiagem de velho, e ele é o Sílvio Santos
“um baú também pode guardar muitos segredos”. tecnicamente verdade. assim como várias outras coisas são tecnicamente verdade no mundo. eu poderia pegar o caminho mais óbvio e dizer que essa tagline parece ter sido escrita por uma inteligência artificial, mas não é nem isso: ela parece ter sido escrita por alguém isolado da sociedade. alguém que concluiu uma graduação em publicidade & propaganda sem ter qualquer contato com o mundo externo. uma pessoa que ia para a aula, escutava o professor falar e não conversava com ninguém. quando chegava em casa, entrava em seu quarto escuro e esperava a aula do dia seguinte. talvez ela não dormia durante esse tempo. talvez ela sentava em sua cama e olhava para a frente. se você abrisse a porta, veria dois olhos e nada mais. não há tomadas no quarto. ela não precisa carregar o celular
é uma frase fascinante. uma redação publicitária como há anos não se via. uma lógica perfeita: é verdade, um baú também guarda muitos segredos. você pode guardar um documento em um baú, e tal documento pode conter muitos segredos. o Sílvio Santos faz o Baú da Felicidade, mas às vezes, um baú também guarda muitos segredos. não guarda só felicidade. eu consigo ver a pessoa mais medíocre do mundo formando essas sinapses em tempo real, e eu também consigo ver a sala de reuniões mais medíocre do mundo simplesmente aceitando tudo isso. talvez alguém naquela mesa pensou que não era um slogan muito bom, mas essa pessoa ficou quieta. a omissão pode te destruir
e o mais divertido? quando eu fui comprar o meu ingresso para assistir Sílvio, o filme de Sílvio Santos estrelando Rodrigo Faro, descobri que essa não é a tagline inteira. aparentemente, o correto agora é “além de felicidade, um baú também pode guardar muitos segredos”. que bom. eu fico feliz. nós precisávamos de esclarecimentos, e é isso que ganhamos. um baú pode guardar muitos segredos? claro que sim. além da felicidade, vários outros. talvez se eu pensar muito forte nisso, eu consiga explodir a minha cabeça. eu vou tentar agora mesmo
Sílvio, estrelando Rodrigo Faro, é um filme. uma película principalmente sobre o sequestro de Sílvio Santos em 2001, um dos episódios mais marcantes da história do apresentador — quer dizer, isso é o que eu ouvi falar, já que eu mal tinha consciência quando isso aconteceu naquela época. eu lembro do onze de setembro só pelas reprises nos anos seguintes, e eu acho que eu assistia muito Tots TV na TV Cultura nesses tempos. é um questionamento interessante: será que eu já sabia quem era Sílvio Santos em 30 de agosto de 2001? eu estou mentindo. isso não é interessante. eu só estou evitando pensar no filme
é aquilo: cinebiografias sempre estarão na moda. enquanto existirem pessoas com vontade de pagar dinheiro de verdade para assistir uma versão dramatizada da história supostamente real da vida de Freddie Mercury, estúdios bilionários estarão prontos para produzir tal versão dramatizada — e talvez essa obra cinematográfica seja indicada ao Oscar em algum categoria técnica, como melhor mixagem de som, ou talvez ela esteja estrelando o Rodrigo Faro. é possível que o Lucas Veloso faça uma participação de 30 segundos interpretando Chico Anysio, assim como é possível que a dentadura do Rami Malek seja muito bizarra a ponto de te distrair por boa parte do filme. imagina você chegar para trabalhar em um set de filmagem e descobrir que o seu trabalho naquele dia é transformar o Rodrigo Faro em velho. quer dizer, provavelmente te avisaram com antecedência. mas essa não é uma informação que vai embora tão fácil
Sílvio se passa durante o sequestro de Sílvio Santos em 30 de agosto de 2001. mas ao mesmo tempo, é uma cinebiografia. eu tenho minhas dúvidas quanto à exatidão histórica dos fatos demonstrados nessa película, principalmente porque eu não acho que o Sílvio Santos ficou contando a história da vida inteira para o sequestrador durante as oito horas em que esteve sob a mira de uma arma. talvez ele tinha coisas mais importantes para fazer, como tentar não morrer. ao menos há algo levemente criativo nisso — perceba que eu não disse inovador, mas seria extremamente fácil escrever o roteiro de uma cinebiografia do Sílvio Santos contando a história de sua vida desde os tempos de ambulante até o Jogo dos Pontinhos linearmente. eles tentaram algo de diferente aqui. e isso me acalenta um pouco
é difícil não comparar Sílvio com O Rei da TV, série do Disney+ sobre também-Sílvio estrelando José Rubens Chachá como Sílvio Santos — e não Rodrigo Faro. O Rei da TV não é perfeito, mas pelo menos não comete o principal erro de Sílvio: se levar muito a sério. Sílvio se leva muito a sério. Sílvio quer tocar o seu coração, quer fazer você sentir raiva dos vilões, quer fazer com que você simpatize com uma policial civil, quer fazer você olhar para as rugas na testa do Rodrigo Faro e pensar que isso é real. mas não é real. a gente não pode normalizar um Rodrigo Faro desse jeito. ele nem sequer paga 400 reais para um profissional limpar a sua piscina
sinceramente, Sílvio é chato. o que é muito pior do que ser ruim. duas horas de um filme que parece sem propósito, sem razão para existir — quer dizer, há uma razão: o Rodrigo Faro queria muito interpretar o Sílvio Santos. tudo bem. ele pode querer o que quiser. caso tenha gostado da experiência, quero que ele saiba que eu aceitaria um cinematic universe com dezenas de filmes focando em outros acontecimentos da vida de Sílvio Santos. eu quero um thriller político sobre a sua campanha presidencial em 1989, eu quero um suspense sobre a falência do Banco Panamericano, eu quero uma comédia policial em que Sílvio Santos e sua amiga Maísa desvendam crimes na São Paulo de 2010. eu quero — não, eu preciso do Sucession da família Abravanel. é o único jeito de ser feliz
a minha parte favorita do filme é que eles não mencionam o Geraldo Alckmin pelo nome uma vez sequer. ele sempre aparece como uma entidade chamada apenas de governador. é o prefeito de Townsville da vida real
precisamos combater a normalização do rodrigo faro. chega. seria imperdoável alguém que não seja o Matheus Nachtergaele atuando na prequel sobre a candidatura presidencial.
O Sucession da Família Abravanel seria perfeito para a terceira temporada de O Rei da TV