a falta de foco é um dos grandes males do século XXI — quer dizer, depois das guerras, fome, a ascensão da extrema-direita, a destruição da democracia por meio das redes sociais e uma ou outra pandemia que venha a ter acontecido. pode parecer difícil de acreditar, mas eu sou uma pessoa com TDAH extremo: qualquer atividade no meu dia-a-dia demora umas três vezes mais para concluir do que qualquer pessoa normal faria — até o momento em que eu realmente consigo focar no que estou fazendo. aí eu termino tudo muito rápido. e saber que você tem a capacidade de terminar todas as suas tarefas muito mais rápido que a maioria das pessoas mas ser impossibilitada disso por motivos de cérebro quebrado é muito mais frustrante do que parece
e quando a tarefa que necessito realizar se chama escrever uma newsletter, eu sou completamente insuportável. uma chata. para conseguir focar no que estou fazendo, eu preciso ser deixada sozinha. se você me interromper enquanto eu estiver no processo de me preparar para iniciar um texto eu não necessariamente vou te matar, mas talvez eu cometa sim suicídio: pouca coisa na vida me deixa mais irritada que isso, e eu sou uma pessoa que não se irrita facilmente
agora, uma pequena pausa para te fazer uma pergunta: você conhece a Filmicca?
a Filmicca é uma plataforma de streaming nacional e independente com uma curadoria exclusiva focada em cinema autoral e cult, com novos lançamentos todas as semanas. quer assistir algo que fuja do óbvio? esse é o lugar ideal!
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minha recomendação essa semana é O Funeral das Rosas, filme de 1969 dirigido por Toshio Matsumoto. sempre é bom uma película sobre gays trambiqueiras. é meio difícil de explicar O Funeral das Rosas, mas ele pode ser descrito como um filme onde coisas acontecem. assassinatos, suicídios, visitas a museus e idas a sorveterias — basicamente um dia normal para uma garota transgênero na Tóquio dos anos 1960 e na Criciúma dos anos 2020.. assista já na Filmicca!
e o silêncio também ajuda bastante. quer dizer, não só o silêncio em si: coisas que remetem ao silêncio também podem funcionar muito bem. eu mantenho no meu aplicativo de anotações uma lista constantemente atualizada de álbuns instrumentais do mais variados gêneros: ambient, drone, industrial… eu consigo escrever textos escutando noise e acredito que isso é uma das minhas maiores habilidades
H. R. Giger's Studiolo, lançado em 2014, é um dos projetos mais incríveis no meio do hypnagogic pop — mesmo tendo saído alguns anos depois do auge do gênero. talvez o maior expoente desse estilo seja o James Ferraro, um homem maluco que eu constantemente imploro para os leitores desta publicação escutarem: Spencer Clark, mente por trás de Typhonian Highlife, trabalhou com o sr. Ferraro em álbuns inacreditáveis em meados dos anos 2000. juntos ele formavam o grupo The Skaters. The Skaters era uma negócio meio ritual ambient lo-fi, uma combinação que criou alguns dos sons mais horripilantes já produzidos por seres humanos
e é, eu diria que 75% dos textos que eu escrevo são produzidos enquanto escuto discos tenebrosos e aterrorizantes do James Ferraro. uma pessoa normal procuraria um stream de beats lo-fi para estudar/relaxar no YouTube, mas sinceramente eu acredito que minhas newsletters seriam consideravelmente piores se eu escutasse esse tipo de coisa enquanto escrevo. de certo modo, eu preciso de algum caos. uma simulação de caos, ao menos, enquanto o mundo ao meu redor segue relativamente calmo. por que não trabalhar com ruído branco
sinceramente? top 5 melhores ruídos. e misturado com uma tela preta, então? melhor ainda. admito que já fui mais adepta do tal ruído branco como ferramenta para concentração — hoje em dia, uso mais como um bloqueador de pensamentos. não consigo dormir porque estou nervosa com algo que preciso fazer no dia seguinte? é só abrir esse vídeo pelo YouTube no celular e ficar com o cérebro lisinho. nada vai passar pela sua mente, apenas o ruído. tente contar carneirinhos. não vai funcionar. eles também foram pegos pelo estático
talvez hoje em dia eu prefira outros sons para trabalhar porque tudo que encontro no ruído branco eu também encontro em outras músicas. pouca variação? é só escutar um drone, um disco do Tim Hecker. sons abrasivos, que corroem sua alma? literalmente só ir atrás de um onkyo. ao menos você está conhecendo culturas novas, artistas novos, discos novos. isso é quase um ruído, mas é arte. portanto, é melhor
esses dias eu tentei escrever um texto enquanto escutava Slot Machine Music, uma coleção de gravações de cassinos dos Estados Unidos feita pelo músico Adrian Rew. eu não consegui. que fique de lição para pessoas mais normais
o filme The People’s Joker, lançado em 2022
em algum ponto das últimas décadas, parece que o ser humano começou a ter um enorme pavor de grandes corporações. empresas que antes serviam apenas para produzir os seus grãos de café favoritos ou um programa de televisão que você assiste enquanto toma um café passado com os seus grãos favoritos agora parecem ter tomado um status místico, colocadas em um pedestal semi-imaginário criado por si próprias através da publicidade, da propaganda e outros métodos nefastos. em um mundo com problemas sociais cada vez mais evidentes, em um mundo com serviços públicos cada vez mais sucateados, o que antes era apenas uma Elma Chips se torna um novo Deus. eu assisti uma propaganda de Doritos no intervalo da Sessão da Tarde e me radicalizei. as cruzadas dos salgadinhos se aproximam. de que lado você estará? e mais importante, quem ao seu lado estará?
por isso, mais do que nunca, precisamos da Coringa do povo. The People’s Joker é um filme de 2022 que possui um resumo muito mais interessante do que apenas um filme de 2022. exibido pela primeira vez no circuito de festivais no final daquele ano, o filme é uma coming-of-age transgênero que utiliza com base na tão-invocada lei de paródias estadunidense os personagens da franquia Batman. The People’s Joker não é apenas um título semi-relevante: a personagem principal é uma Coringa do povo, e ela utiliza maquiagem de Coringa, e o seu melhor amigo é o Pinguim, e o Batman é o vilão de Gotham City. não é um negócio Turma da Mônica, onde eles chamariam o Arkham Asylum de Asilo Arcão: aqui é o negócio de verdade. que se fodam as grandes corporações
e assim, é óbvio que a Warner Bros. eventualmente tentaria destruir essa produção. após a primeira exibição pública, eles deram uma de Nintendo e enviaram uma carta muito mal-educada para a diretora avisando, basicamente, pra ela parar com essa besteira aí. e grande parte do status de clássico-cult-quasi-não-realizado d’A Coringa do Povo veio exatamente disso: sabe o jeito que certas pessoas agem até hoje, fingindo que The Day the Clown Cried seria uma obra-prima da tragicomédia só porque ele nunca foi lançado? tinha um pouco disso no ar. quase um luto pelo que nunca foi vivido, ou pelo que nunca foi exibido, ou pelo que nunca foi pirateado via torrent. bom. o que importa é que deu tudo certo. The People’s Joker existe, The People’s Joker pode ser pirateado via torrent e The People’s Joker é uma coming-of-age transgênero
o maior elogio possível a The People’s Joker é que é um filme que transcende toda essa polêmica. seria muito fácil agir como se ele não fosse nada além de um dedo do meio para Hollywood — os pequenos artistas se rebelando contra um conglomerado multibilionário com mais dinheiro na conta do que há formigas no planeta Terra. admita, é uma ótima narrativa. mas The People’s Joker não é.
ainda estamos em um momento onde filmes transgênero produzidos a partir da ótica de pessoas transgênero são uma raridade — afinal, é muito mais fácil escrever um A Garota Dinamarquesa e escalar o Eddie Redmayne como uma mulher trans do que realmente escutar o que tais mulheres trans têm para falar. nossas experiências constantemente são reduzidas a um ou dois plot points que dão cenas muito emocionantes em filmes que passarão na TNT daqui a seis meses — gire uma roleta, caia em uma das casas da jornada do herói e transforme tal herói em uma pessoa trans. pronto. é caricato? óbvio que sim. a gente ainda é vista como caricata por tanta gente. Rodrigo Sant'anna se veste de mulher toda semana no Multishow e é assim que a banda toca
caso assim deseje, o leitor pode criar um paralelo entre The People’s Joker e Glen or Glenda. guardadas as devidas proporções. um filme autobiográfico ao mesmo tempo em que não é — Vera Drew, a diretora e a própria Coringa do povo, é sim uma comediante underground na vida real, mas ela não mora em Gotham City. provavelmente ela mora em Los Angeles. The People’s Joker é extremamente direto. sim, é verdade: uma infância transgênero normalmente envolve inúmeros sentimentos de culpa, um medo enorme de decepcionar as pessoas que você mais ama e constantes idas ao psiquiatra que nem você entende direito ainda. eventualmente você entende que a culpa é algo que a cisnormatividade enfiou na sua cabeça, que não existe necessariamente uma relação de amor com essas pessoas mas sim uma dependência emocional e que estavam te receitando sertralina porque você demonstrou vontade de beijar um colega de escola. qualquer sentimento ruim pode ser resolvido com psicotrópicos
caso um ser humano esteja agindo de má fé, The People’s Joker pode muito bem ser interpretado como uma história bobinha. você decide se o relacionamento abusivo com uma versão transmasc do Coringa do Jared Leto é engraçado ou não. o clichê de found family o qual praticamente o filme inteiro se baseia é bacana ou apenas, bom, um clichê? se você apontar que é um clichê durante o próprio filme, isso fica mais ou menos clichê? você dá uma risadinha ou você revira os olhos? tudo bem um clichê ser de propósito? qual o propósito de um clichê? por que a Hera Venenosa é um modelo 3D não-binárie? porque sim. você jamais entenderia
e ao mesmo tempo em que é uma história bobinha, The People’s Joker é muito bonito. números musicais surgindo do nada, um uso constante de telas verdes ao invés de cenários verdadeiros, atuações abaixo do esperado… e sinceridade. talvez se tivesse saído há algumas décadas, chamariam isso de outsider art. talvez eu chamaria hoje em dia. meio que uma pessoa transgênero automaticamente é uma outsider da sociedade. não importa o quanto você queira comentar sobre a passabilidade da Hunter Schafer
The People’s Joker é transgênero, e não há nada mais transgênero no mundo que desrespeitar direitos autorais.
Obrigado por me lembrar de ver The People's Joker.
Eu já tinha me interessado muito quando saiu na versão para bons da Newsletter. Vou assistir no natal
"pode parecer difícil de acreditar" será que pode? kkkkkkkkk