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eu destruirei vocês #98: caneta azul, azul caneta
caneta azul, Araguaia/MT x San Lorenzo e sabonete de hortelã
parece que foi ontem que o nosso Brasil, tão devastado por consecutivas derrotas em quartas de final de Copas do Mundo e novelas das 19h horrorosas, descobriu toda a singularidade e potência da voz de Manoel Gomes, o Caneta Azul — e você sabe que um homem impactou o mundo quando ele é conhecido por um substantivo
em 2019, era impossível se ver livre da caneta azul — e consequentemente, da azul caneta. similar ao bora Bill, esse não foi um meme que surgiu primeiro nas profundezas da internet até lentamente chegar ao topo: o caneta azul veio direto da superfície e por lá ficou. era um meme que tias do Facebook compartilhavam o dia todo, e tenho certeza que sem ele o conceito de figurinhas do WhatsApp não teria feito esse sucesso todo
e em 2020, auge de nada em específico, ele lançou o seu primeiro disco — obviamente intitulado Caneta Azul. seguindo a tradição dos discos duplos clássicos do cânone do rock, como London Calling e Blonde on Blonde, Caneta Azul tem dezoito faixas e duração de uma hora e cinco minutos. e para fãs da faixa-título, trago boas notícias: ela está presente no álbum duas vezes
Caneta Azul talvez seja um dos maiores exemplos brasileiros da chamada outsider music — basicamente, música estranha feita por gente estranha. eles têm Jandek? grande coisa, nós temos Manoel Gomes. você pode até ter escutado muita música na vida, mas nunca ouviu nada igual ao que Manoel Gomes escreve. seu estilo de cantar, quase gemendo, cheio de dor na voz, me lembra de grandes cantores do delta blues — um negócio meio Robert Johnson — e suas incessantes letras sobre mulheres bandidas e vagabundas me lembram de adultos que ainda acreditam no conceito de friend zone
Parabéns, a primeira faixa do álbum, já dá o tom do que esperar do disco. uma canção em que Manoel Gomes demonstra toda sua felicidade com o convite que recebeu para a festa de aniversário de Paula, seu antigo amor — e segundo ele, esse convite significa que ela ainda o ama. uma lógica um tanto quanto falha, mas que na cabeça de Manoel provavelmente fazia sentido. essa canção tem um exemplo de algo que se repete em quase toda música do disco: as letras completamente insanas que aparecem do nada. nesse caso, o culpado é o terceiro verso
Você é muito inteligente
Você pode ser até uma doutora
Sei que você já é formada
Sei que você é uma professora
isso é arte. assim como é Maura, genuinamente uma canção boa — sinto que um cover dessa música pelo Sonic Youth ficaria incrível. Maura é uma música sobre Maura, a mulher que como tantas outras machucou o coração de Manoel Gomes — e após essa decepção amorosa, o compositor “não pode mais passar naquele supermercado onde ela trabalha”, talvez se esquecendo que existem outros caixas em que ele poderia fazer as compras da semana
aqui nós começamos a observar melhor a visão peculiar que Manoel Gomes tem do amor: no meio da música, ele diz que “é triste demais a um homem viver apaixonado”. o derrotismo está sempre dentro de nós. se nem nós acreditarmos que o amor verdadeiro é possível pra gente, quem vai acreditar?
Caneta Azul VII — sim, aparentemente a sétima versão gravada de Caneta Azul — é a grande obra central do disco. o pior meme de 2019 e o melhor meme de 2022, Caneta Azul é um dos negócios mais inexplicáveis da história do Brasil — não pelo refrão, que o país todo canta até hoje, mas pelos versos mesmo, e eu sinto que as pessoas se esquecem dessas partes da música frequentemente. o primeiro verso, por exemplo, diz o seguinte
Todo dia eu viajo pra o colégio
Com uma caneta azul e uma caneta amarela
Eu perdi minha caneta e eu peço
Por favor, quem encontrou, me entrega ela
inexplicável. primeiramente, compreendo ter uma caneta azul, ela é a mais clássica, a mais vanilla das canetas, mas qual a necessidade de uma caneta amarela? nunca que a tinta amarela vai aparecer em um papel branco. você não vai conseguir ler nenhuma anotação que fez com ela na hora de estudar.. e afinal, porque essa caneta era tão importante assim para você não só implorar para que a devolvam, mas também escreva uma música sobre ela? ela foi dada por alguém especial, você tem boas lembranças com ela, o que? e aí o segundo verso só traz mais questões
A professora, ela veio brigar comigo
Porque eu perdi a última caneta que eu tinha
Não brigue, professora, porque eu vou comprar outra canetinha
ok, aqui tem uma falha monumental: ele diz que perdeu a última caneta que tinha, ou seja, está negando a existência da caneta amarela? e Manoel Gomes é um adulto: por que a professora está brigando com ele por não ter uma outra caneta? essa é uma história da infância de Manoel Gomes? é algum trauma que ele não superou até hoje? tem vezes que é melhor ir num analista ao invés de escrever uma música
algo que me impressiona no disco é que todas as músicas possuem uma sonoridade quase igual, mas ao mesmo tempo elas são insanas de jeitos completamente diferentes.
Passarinho, por exemplo, é uma música sobre um passarinho que fugiu, Ela Não Deixa tem uns gemidos de mulher no instrumental e me deixa altamente desconfortável, Hospital é sobre um acidente de moto que o Manoel Gomes sofreu e em Me Mande uma Carta, o cantor implora por uma carta da antiga amada “nem que seja num pedaço de papel”. qual seria a alternativa eu não sei
em suma, Caneta Azul é um disco que mostra toda a versatilidade de Manoel Gomes ao mesmo tempo em que mostra o quão unidimensional seu trabalho é. críticos dirão que grande parte da obra do cantor é composta de canções sobre amores perdidos com uma leve dose de misoginia, mas 90% das bandas clássicos do rock podem ser descritas com essa frase também — Guns N’ Roses e Led Zeppelin são literalmente isso e estão sempre nas listas da Rolling Stone de melhores artistas da história
tudo que eu sei é que se tem um homem no Brasil que já amou demais, esse homem foi Manoel Gomes. e o amor muda o mundo.
Araguaia/MT x San Lorenzo
classificações que mudariam o futebol brasileiro
como já se foi dito inúmeras vezes por pessoas ligadas ao mundo da bola, o futebol não faz sentido nenhum — assim como a vida em geral. a quantidade sem fim de campeonatos que são decididos no detalhe já deveria dar uma pista sobre isso, mas quando você começa a considerar os vários modos em que o destino de toda a história de um time poderia mudar às vezes com um único gol, você entende porque o Ashton Kutcher inventou a teoria do efeito borboleta
um ótimo exemplo disso remete a dois times: o Araguaia/MT e a Chapecoense. em 2009, quando a Série D ainda era praticamente apenas mato e tão ignorada que times desistiam constantemente de participar do torneio por considerá-lo inútil, essas duas equipes se enfrentaram nas quartas-de-final valendo uma vaga na Série C de 2010. naquele momento, a Chapecoense nunca tinha chegado tão longe em uma competição nacional — assim como o Araguaia, que chegou na competição como campeão da Copa Governador de Mato Grosso 2008
a partida de ida teve vitória da Chapecoense por 2-1 fora de casa, a partida de volta foi 1-0 para o Araguaia e a Chapecoense só conseguiu o acesso pra Série C por causa do antiquado & vintage gol fora de casa — e esse foi o início da ascensão do time que viria a acontecer na década seguinte, com acesso da C pra B, da B pra A, título de Copa Sul-Americana, participação em Libertadores e outras coisas que ficam meio chatas de mencionar em um texto humorístico. tá bem, eu falo. aquela vez que a trave do estádio caiu durante uma partida contra o Criciúma
e o Araguaia? coitado. essa foi a única participação do time em qualquer campeonato nacional na sua história — participaram também da Copa do Brasil de 2010, mas aí é copa e não campeonato — e em 2010, caíram pra segunda divisão do campeonato mato-grossense
basicamente, essa foi a única chance que o Araguaia teve de conseguir subir de patamar competitivo no futebol nacional, e agora eles provavelmente nunca mais terão outra — até porque o clube não disputa nenhuma competição oficial desde 2012, o mesmo ano em que a Chapecoense subiu pra Série B do Brasileirão. a questão que fica: poderia ser o Araguaia na Libertadores se eles tivessem marcado um gol a mais nessa partida? provavelmente não, mas é um exercício de futurologia interessante. imagine a seguinte frase: Araguaia x San Lorenzo. ok, agora pode continuar seu dia
outro caso parecido e que até hoje machuca ocorreu nas quartas-de-final da Série C de 2018. primeiramente, é importante saber que o futebol do Acre é completamente fudido: vários times do estado tiveram a chance de conseguir algum acesso nos últimos anos, mas sempre acabaram perdendo a oportunidade no final — em 2009, por exemplo, o Rio Branco só não subiu pra Série B por causa dos tais gols fora de casa depois de dois empates com o ASA de Arapiraca. na Série D de 2013, quase que o Plácido de Castro subiu — o que mostra que é impossível confiar em time com nome de gente
mas o que mais dói até hoje no torcedor do estado é o Atlético Acreano. em 2017, o time conseguiu o único acesso do Acre em uma Série D desde que ela foi criada — e foi praticamente na sorte. o time não tinha dinheiro, não tinha estrutura, caixa d’água com gelo, etc. — mas eles tinham um sonho. fizeram a terceira melhor campanha da primeira fase e no jogo do acesso, derrotaram o eternamente fracassado São José de Porto Alegre
no ano seguinte, outro milagre: segunda melhor campanha da primeira fase na Série C, na frente até do Santa Cruz e do Botafogo-PB, e de algum modo o Atlético Acreano estava a uma partida da Série B do Brasileirão — porque nada nunca faz sentido. eles perderam pro Cuiabá, mas isso literalmente não importa: o que importa é o que poderia ter acontecido, que é muito mais interessante do que qualquer coisa. poderíamos ter tido um time do Acre em uma Série B. ele teria jogado contra o Coritiba e o Sport Recife. é isso que nos tiraram
e agora, um exercício de imaginação: em 2019, quando a Red Bull abriu os olhos e percebeu que o Red Bull Brasil era intrinsicamente flopado, foi decidido que eles precisavam comprar um time já na Série B do Brasileirão — e aí, optaram pelo Bragantino, que havia acabado de ser terceiro colocado da Série C. imagina só se o Bragantino não tivesse subido pra Série B no ano anterior? simplesmente não existiria um Red Bull Bragantino hoje, e ele não seria o vice-líder da Série B
na época, era ventilado na imprensa que o principal candidato a ser comprado pela Red Bull era o Oeste de Itápolis, time que já era o mais antipático do Brasil e que chegaria em níveis quase Karol Conká 2020 de ódio acumulado caso a venda tivesse sido concretizada
eu preferiria parar de acompanhar futebol do que ser obrigada a ver um time chamado Red Bull Oeste militando na primeira divisão do futebol nacional
diversos lançamentos musicais na última semana foram musicalmente lançados em plataformas digitais, e eu adoraria pegar esse espaço para falar sobre como eles são bons
Tarde é o primeiro single da clara bicho, e eu confio automaticamente em qualquer artista que utilize apenas letras minúsculas no seu nome. essa música tem uma vibe bedroom pop que me lembrou Clairo — mas não as músicas ruins do início da carreira dela. isso parece Amoeba e Bags mesmo
em mais uma ode às letras minúsculas, a banda de shoegaze/emo julie lançou aquele que deve ser a música anual deles — um grupo que existe desde 2018 e tem menos de dez músicas em seu catálogo. catalogue é extremamente boa. é Bôa – Duvet se tivesse mais guitarras distorcidas
poucas coisas me fazem sentir mais millennial do que escutar the Mountain Goats: uma banda praticamente feita para estadunidense de 37 anos fãs de Comedy Bang! Bang! e leitores assíduos de David Foster Wallace. eu sou de 1996, então existe uma polêmica a qual geração eu pertenço. talvez eu me importasse com isso se também fosse estadunidense
domingo eu comprei um Granado de hortelã e eu sinto que minha vida nunca mais será a mesma. é toda uma nova experiência sensorial tomar um banho com aquilo. e se pra tomar banho ele já é gostoso assim, imagina comendo
vocês já viram o escudo do Leeds United nos anos 1970. ele era perfeito.
eu chorei com isso outro dia. o mundo é tão lindo. eu amo o planeta Terra
eu destruirei vocês #98: caneta azul, azul caneta
Caneta Azul fazendo show antes do começo de um jogo da série D é o que falta para a motivação dos jogadores: chega de amor, só o futebol salva.
nunca li uma análise tão boa de um álbum. obrigada isa