tendo vivido tanta coisa nesses 28 anos em que eu estive no planeta Terra, consigo afirmar com certa propriedade que ser um garoto adolescente é uma das experiências mais desprezíveis existentes. claro, não tenho dúvidas de que ser uma garota adolescente também deve ser absolutamente horrível — sentimentos que já foram muito comentados na literatura contemporânea, em girl essays de mulheres gringas no Substack e programas da Fernanda Young no GNT. vivências que podem ser descritas como uma edição da revista Capricho com o seu rosto desfigurado na capa. quer dizer, ao menos isso é o que eu escutei outras mulheres ao meu redor falarem. eu não tive essas vivências. eu não tenho certeza se já passei da fase em que uma tristeza profunda cobre o meu ser toda vez que eu penso na minha própria infância perdida, mas ao menos hoje eu entendo que eu não estou sozinha. todo mundo teve sua infância roubada em algum momento
sendo uma mulher trans que acreditava ser um menino normal, cisgênero e heterossexual é uma experiência engraçadíssima — e eu tenho um hábito meio chato de descrever situações traumáticas em minha vida com a palavra “engraçado”, provavelmente um modo de menosprezar os meus próprios sentimentos em relação a qualquer coisa. se eu fizesse análise, minha analista inexistente diria isso. sim, tudo bem: pode ser até engraçado pensar que eu acreditava ser um garoto cis e hétero aos quatorze anos de idade, mas quando eu forço a me lembrar de momentos específicos desses primeiros quatorze anos de idade, aquela tristeza profunda volta como se fosse um lençol. não é um cobertor pesado no inverno, mas poderia se tornar caso eu pensasse mais nela
eu sempre odiei Crepúsculo. em 2008, eu tinha 12 anos de idade — a época em que um ser humano está no nadir de sua empatia, e quando esse ser humano é um menino é pior ainda. um menino de 12 anos de idade odeia tudo que não faça parte de sua realidade. ele gosta de videogames e desenhos e filmes, mas apenas dos videogames e desenhos e filmes certos: o que não é correto é sumariamente descartado e jogado aos porcos como coisa de viadinho. e obviamente, a pior coisa para um menino de 12 anos de idade é ser visto como gay. Crepúsculo é coisa de menina. se você gostar de Crepúsculo, você vai ser uma menina. você quer ser menina? calma, não responde
nessa época, a grande maioria dos meus amigos eram amigas. eu nunca fui uma criança ou um adolescente ou jovem adulto afeminado: fui muito bem reprimida em casa e isso nunca se tornou o problema que a minha família tanto temia. podia ser Crepúsculo, mas também podia ser qualquer outra coisa popular entre garotas: os garotos da Restart, gente boníssima, eram todos viados. calças coloridas? uma aberração. Justin Bieber? eu era uma pessoa sofisticada demais para rir das paródias do Galo Frito, mas eu não gostava da franja desse guri — sendo que eu usava literalmente o mesmo corte de cabelo dele para que garotas bonitas me dessem um beijo na bochecha e me chamassem de “fofo”.
enquanto minhas amigas adoravam Miley Cyrus e sua irmã gêmea Hannah Montana, eu precisava fingir que não queria assistir Hannah Montana: O Filme no cinema — e eu fingia tão bem que conseguia até mesmo me convencer que eu não queria assistir Hannah Montana: O Filme. quase vinte anos depois, talvez seja hora de contar um segredo. eu queria muito assistir Hannah Montana: O Filme
e esse sentimento acabava se traduzindo em culpa. uma culpa ensurdecedora que parecia não ter uma origem. um ódio compulsório a toda e qualquer expressão de feminilidade levava a um ódio a mim mesma toda vez que eu cogitava pensar em algo dito feminino. a masculinidade é frágil, todo mundo sabe disso, mas a masculinidade adolescente é mais frágil ainda. eu fiz parte de uma geração que ainda achava um completo absurdo um menino usar uma camiseta cor de rosa — seus pais não deixariam você usar, e seus colegas te zombariam para o resto da vida caso você ousasse colocar no corpo algo que não fizesse parte da paleta oficial de cores de menino. e talvez por viver em uma constante vigilância para não fugir das garras da heteronormatividade, eu não conseguia sequer assistir um desenho animado sem me sentir errado. errada?
Hi Hi Puffy AmiYumi? belíssima obra televisiva. um dos grandes desenhos da década de 2000. eu assisti talvez um ou dois episódios quando era criança, e se algum adulto chegasse perto de mim enquanto eu estava na frente da televisão, eu trocaria de canal e colocaria na ESPN Brasil. as personagens principais eram meninas, e eu não posso deixar que me vejam assistindo algo feito para meninas. Três Espiãs Demais? impraticável. ainda mais que a minha parte favorita do desenho era quando as três espiãs estavam fazendo compras no shopping ou procurando um namorado no ensino médio. se alguém me ver assistindo isso, eles vão descobrir todas as coisas que eu penso sobre querer ser uma garota. eu não posso assistir Meninas Superpoderosas. a minha mãe vai saber que eu sonhei que virava uma menina essa noite
tudo convenientemente jogado pra debaixo do tapete, como em toda boa família tradicional. eu aprendi desde cedo que isso era errado, então o tapete do meu cérebro estava tomando proporções gigantescas. havia uma montanha debaixo daquele tapete. são lembranças. quando eu tinha uns 9 anos de idade, eu era uma criança estranha que adorava baixar pôsteres dos últimos lançamentos de Hollywood e simplesmente guardar eles em uma pasta qualquer do computador — exceto um pôster em específico. um pôster proibido que eu guardava em uma outra pasta, longe dos demais. eu tomava muito cuidado para não olhar pra esse pôster perto de outras pessoas, mas sempre que eu tinha a oportunidade eu ficava olhando para ele fascinada. era literalmente só uma Lindsey Lohan loira. hoje em dia eu entendo que eu estava sentindo muita culpa por querer ser ela
hoje em dia, é engraçado lembrar que o meu episódio favorito de Padrinhos Mágicos na minha infância era o que o Timmy Turner virava uma garota. não que eu fosse realmente me questionar sobre os motivos. ops, eu escutei alguma coisa. ah. o tapete está mais alto
eu nunca assisti esse vídeo! talvez seja a hora.
isa, vou aproveitar que essa é um post fechado premium da newsletter pra falar de assuntos bem pessoais também. Não sou uma pessoa trans, nunca vou entender sua dor, mas sim, é horrível a dor da performance masculina na pré -adolescência. Esses dias me lembrei de uma história muito esquisita e atípica da minha família.
Quando meu irmão era muito criança, eu era aficionado na existência dele. Um dia uma tia minha tava bordando ponto cruz numa toalhinha e ela me ensinou como fazia. Eu peguei uma toalha que não tinha nada e comecei a bordar o nome do meu irmão. Bem devagar. Na velocidade que uma criança de 9 anos conseguiria fazer. Meu pai viu a cena, eu estava no meio de "E" de MATHEUS, ele me falou que "eu não deveria estar fazendo aquelas coisas". Veja, ele não levantou a mão pra mim, não me bateu, não me xingou, mas eu entendia o que era "aquelas coisas" a qual ele se referia. Minha mãe o repreendeu dizendo que "ele só está fazendo uma toalhinha pro irmão dele". Ele nunca conversou comigo sobre, a toalha ficou incompleta pra sempre. Passei o dia olhando aquele E não terminado com uma vergonha dupla: a de não ter terminado, a de ter tentado fazer.
Meu pai é um homem bem grande, quase dois metros. Sempre foi uma pessoa carinhosa, apesar de ter suas momentâneas explosões de braveza que assustam todo mundo, até hoje quando penso na mão dele, penso no afago, penso na voz mansa, penso em como ele se desdobra pelas pessoas que ama sem poupar esforços. É um grande homem. Meu pai foi criado num lar meio disfuncional: pai agressivo, um meio irmão alcoólatra que aparecia de vez em nunca pra sair na mão com o próprio pai. Ele era o caçula da casa, via a cena horrorizado. Meu pai sempre ouviu rock de pai, comprava aquelas coletâneas clássicas de CD. Iron Maiden, Men at Work, Rolling Stones, mas o que ele ama mesmo é Queen. Meu pai é grande, barbado, meio hábitos questionáveis, mas não é um grande exemplo de homem másculo viril. A crise de meia idade do meu pai aconteceu lá por 2010, ele desenvolveu uma grande obsessão por Lady Gaga, paralelo a isso, ouvia Beyoncé, Rihanna e todo domingo um Bjork - Venus as a Boy em loop. Na época eu dei de presente pra ele o CD "The Fame" de presente de dia dos pais, talvez um jeito de dizer que "tá tudo bem gostar das coisas".
Hoje eu tô bem. Pinto minhas unhas quando quero, uso a roupa que eu quero, faço escolhas ainda com uma mágoa. Beijo quem eu quero. Com uma cicatriz lá dentro. Meu pai é vivo, mas sempre olho pra ele e penso "talvez só tenha dado pra ser uma parte". David Bowie segue sendo o artista favorito dele.
seu relato é muito doloroso e eu senti suas palavras com o meu coração. entendo por um lado, até hoje não gosto muito de pensar demais nas minhas questões com o meu gênero. eu fui bem "moleca", e ao mesmo tempo gostava de coisas de "menininha" (como barbie, desenhos pro público feminino), com o tempo passei a sofrer bullying por não gostar de me apresentar de um jeito muito feminino e nem conseguir me misturar direito com outras meninas, pra me salvar disso, de única menina da sala que usava uniforme masculino e roupas largas pra não mostrar os seios, eu fui de patricinha total. anos e anos se passaram e eu nunca me senti 100% confortável com isso, até que uma das minhas namoradas expressou preferir homens e eu cai na real que uma das minhas maiores questões foi sempre sentir uma imensa inveja da biologia masculina, e não só dos privilégios. não ter nascido homem me frustra de um jeito que nada nesse mundo poderia aliviar essa dor.