começou há algumas semanas. desde a mudança para o centro de Criciúma, eu venho passando grande parte dos meus dias em casa. é um apartamento enorme, eu trabalho remotamente, minhas obrigações estão quase todas atreladas a um computador — e as que não estão envolvem lavar louças e varrer quartos, portanto, praticamente não há motivo para sair daqui em horário comercial. eu compro uma marmita de vez em quando, subo de volta para o apartamento e continuo meu dia. hoje eu preciso entregar uma matéria sobre um festival de teatro. muito que bem. farei isso
são três os quartos nesse apartamento: em um deles nós dormimos, em um deles o gato dorme enquanto não compramos móveis e um deles meio que é o meu escritório — e com isso eu quero dizer que eu tenho um notebook, um monitor ultrawide, um teclado mecânico e alguns cabos sortidos ao meu redor. mas principalmente, diretamente no meu campo de visão, há uma janela. pode parecer bobo, mas eu aprecio muito a existência de janelas: no apartamento de 20 e poucos metros quadrados onde morávamos até recentemente, havia apenas uma janela, que ficava no quarto. era impossível qualquer ar circular pelo local e os verões eram infernais. contando agora — me dá um segundinho — temos ao menos doze janelas, isso sem contar três sacadas diferentes. mas a mais importante é a do escritório
todos os dias, o dia inteiro, eu tenho a mesma visão. eu olho para fora e meus olhos imediatamente batem em um ponto específico do horizonte. há menos de dois minutos a pé da nossa casa fica o Shopping Della, o primeiro shopping center de Criciúma, inaugurado em uma data desconhecida do mês de novembro de 1984.
eu consigo ver a sacada do Shopping Della da minha janela. nas centenas de visitas que eu fiz a esse shopping center em toda a minha vida, desde a infância até os dias atuais, eu nunca vi essa sacada do lado de dentro. onde ela fica?
veja bem: sacadas normalmente são criadas para serem usadas. a função de uma sacada é te dar uma vista diferenciada de algum ponto, ou ser um espaço igualmente diferenciado para convívio. pessoas fumam em uma sacada, pessoas conversam em uma sacada, pessoas olham para longe em uma sacada. nesses dois meses tendo essa vista do meu escritório, eu vi exatamente uma pessoa nessa sacada. um homem jovem, branco, cabeludo e de barba que parecia meio confuso — eu não sei o que ele queria, mas quando ele me viu o observando através da janela, meio que saiu correndo do lugar. talvez ele não esperasse outra alma viva tão perto, assim como eu não esperava uma alma viva naquela sacada
a partir desse ponto, é como se eu tivesse finalmente percebido. “pois é”, eu exclamei internamente. “ninguém nunca vai nessa sacada, né?”. afinal, o que é essa sacada? qual o seu propósito, de onde ela surgiu, como eu nunca tinha percebido isso antes? todas as vezes que eu olhava para fora da janela, em algum momento de falta de atenção com o trabalho que estava produzindo, meus olhos fixavam naquela sacada. é como se ela existisse apenas do lado de fora. não tem como você entrar nela pelo shopping — ou tem? a dúvida me atormentava. a sacada me atormentava. eu não aguentava mais. eu precisava agir.
caminhando dois minutos até o Shopping Della, eu subi até o quarto andar do local. veja bem: o Della é único em Criciúma porque os outros shoppings da cidade não tem um segundo andar — lá é tudo térreo, aqui temos quatro andares. o terceiro andar é uma praça de alimentação, mas olhando através da minha janela eu conseguia ver que aquela sacada ficava no quarto e último andar do shopping — qualquer outra coisa não faria sentido arquitetonicamente, então parti do pressuposto de que o Della não quebra nenhuma lei da física. no último andar é onde fica o cinema e uma quantidade grande de salas comerciais que nunca foram alugadas — há um salão de beleza, outro salão de beleza e é isso. e faz sentido: as pessoas não visitam esse andar esperando adquirir produtos. as lojas de verdade ficam embaixo. no imaginário criciumense, o quarto andar é só o cinema. mas ele não é
a estética altamente sanitizada do lugar dá uma sensação muito estranha — é como se você estivesse em um escritório de dentista que nunca acaba. eu procurei a sacada em todos os lugares possíveis desse corredor. eu abri uma bússola no meu celular pra me orientar e decifrar para qual lado ficava o meu apartamento e, portanto, descobrir onde poderia ficar a sacada. eu tentei abrir todas as portas possíveis, e todas estavam trancadas. eu provavelmente parecia extremamente suspeita nesse momento, mas graças a Deus nenhum segurança me abordou e perguntou o que eu estava fazendo — eu não sei se conseguiria explicar rapidamente toda essa questão sem parecer uma maníaca
sem ter chego em uma resposta com as minhas próprias mãos, decidi segurar a mão de outros. quando percebi que a administração do shopping ficava nesse mesmo andar, fui perguntar — parecendo uma maníaca — onde essa tal sacada ficava. expliquei minha motivação, o sofrimento psíquico que sua misteriosa existência me causava, e obtive uma primeira resposta: a sacada fazia parte de uma sala comercial. há muito tempo, ela era aberta ao público. em determinado momento, foi fechada.
ok. eu tinha informações. era o que eu queria? eu não sei. talvez eu não sabia o que eu queria, mas sabia que não terminava ali. por algum motivo, meu primeiro instinto ao chegar em casa foi procurar fotos antigas do Shopping Della na internet — ou melhor, Shopping Center Della Giustina, que é como eu o conheci durante toda minha infância e adolescência. o empreendimento foi um projeto do empresário da cidade Natalício Della Giustina, que talvez queria ser lembrado para sempre na cidade e, já que construir uma estátua de ouro maciço no centro de Criciúma não era viável, decidiu erguer um monumento ao capitalismo e ao seu sobrenome em um dos pontos mais caros da praça Nereu Ramos. em 2004, o shopping foi vendido e, eventualmente, teve o nome encurtado para Della. chega de Giustina
infelizmente, são pouquíssimas as imagens que encontrei de como era o shopping tempos atrás. algumas coisas as pessoas dificilmente registram mesmo. porque você bateria fotos de um shopping center sendo que pode visitar ele a qualquer momento? você bate fotos panorâmicas do supermercado onde faz compras? claro que não. esses lugares mudam constantemente a ponto das memórias que você tem dos seus diferentes espaços se misturarem, se confundirem — eu lembro quando o Criciúma Shopping tinha um supermercado Big acoplado e uma loja Multisom em frente às Americanas, exceto que esses três estabelecimentos nunca estiveram juntos ao mesmo tempo. o Big fechou em 2003, a Multisom abriu em 2005, as Americanas abriram em 2006. o que tinha no lugar das Americanas? eu não lembro. hoje em dia tem uma Havan no lugar do Big. o progresso nem sempre é linear
buscando respostas no passado, decidi visitar o Arquivo Histórico Municipal Pedro Milanez. nesse ponto, toda essa questão já tinha passado da fase de, bem, uma questão e se tornado uma obsessão. eu precisava de algo. o site oficial do Shopping Della menciona a data de inauguração do lugar como sendo 27 de novembro de 1984, e eu pedi para ver os acervos de jornais de novembro de 1984. na época, a Tribuna Criciumense e o Jornal da Manhã eram os dois diários da cidade: a Tribuna Criciumense passou a ter imagens apenas no ano de 1987, e o acervo não continha as edições do Jornal da Manhã de 1984. mas algumas coisas eu encontrei
na edição de 30 de novembro de 1984, a Tribuna Criciumense noticiava a inauguração do Shopping Center Della Giustina — num bonito e moderno conjunto arquitetônico. leia a primeira frase: desde o dia 29 de novembro. tudo bem, nesse momento eu não estou mais pensando tanto na sacada: qual a verdadeira data de inauguração do Shopping Center Della Giustina? na edição de 27 de novembro de 1984, a coluna de fofocas da radialista e fofoqueira Zuleide Herrmann noticiava o seguinte
uma suposta abertura oficial ao público no dia 30 de novembro de 1984. já são três datas diferentes para a inauguração do shopping. comecei a pensar que talvez esse referido coquetel às autoridades e convidados poderia ter sido o que o Shopping Della utilizou como sendo a inauguração oficial, mas perceba que esse jornal é do próprio dia 27 — a data que está no site. ou seja, o coquetel foi no dia 28. basicamente, existem quatro datas possíveis para a inauguração do shopping, e eu não faço ideia qual é a verdadeira — e aliás, o que exatamente é uma inauguração? é quando as pessoas normais podem comprar produtos nas lojas, ou quando canapés e champagnes são servidos a homens engravatados e suas esposas não-engravatadas? quando o Shopping Center Della Giustina foi inaugurado? e mais importante, onde fica a porcaria daquela sacada?
sabe aqueles exploradores do século XIX que ouviam falar de uma ilha qualquer no meio do Oceano Pacífico e passavam a dedicar sua vida a ela, até que finalmente chegavam no lugar e eram brutalmente assassinados pelos nativos? era meio isso. é como se a sacada me chamasse. ela não falava comigo, mas eu sentia uma necessidade de olhar pra ela o máximo possível. tentar decifrar alguma palavra no meio daquelas luzes do corredor, analisar a estrutura, os vidros, as janelas. eu tinha certeza que quando eu chegasse naquela sacada, eu morreria. era um mangá do Junji Ito esperando para acontecer.
eu procurei todas as salas comerciais no site da imobiliária do shopping, e imaginei que tivesse chegado perto de encontrar a sala da sacada em alguns momentos, mas percebi que estava só me enganando. lendo todas as páginas possíveis no site do Shopping Della, eventualmente cheguei na página de comercialização — ou seja, informações sobre locação de salas no espaço. de certo modo, era isso que eu precisava. esperei a segunda-feira chegar, mandei um e-mail para o endereço no site e esperei. expliquei toda a situação tentando fingir que tudo isso era normal e, não sei como, acharam normal e marcaram uma visita para as 14h de terça-feira.
inicialmente, a sala comercial localizada no quarto andar do Shopping Della era um terraço. com uma bela vista para a cidade, o espaço era muito utilizado para eventos da alta sociedade criciumenses — coquetel com homem de terno era ali mesmo, até que decidiram acabar com tudo isso por medo de pessoas aleatórias cometerem suicídio no local. uma preocupação justa, acredito eu.
ao longo dos anos, ela foi utilizada como reduto da pizzaria Pirandello, atualmente localizada na avenida Getúlio Vargas, e como point da Confraria do Cabelo. faz muitos anos que nada acontece aqui. ela é utilizada meio como depósito geral do shopping atualmente: uma quantidade enorme de cadeiras dos mais diferentes tipos, um calmante papel de parede de floresta e alguns cones, certamente utilizados para algo. realmente, é uma sala enorme: possivelmente a maior do shopping, e empresas constantemente buscam o lugar para locação mas desistem no meio do caminho por motivos misteriosos
talvez a sacada os chame também. ela é muito maior do que parece de longe — na real, isso é uma varanda. no teto, uma única lâmpada pendurada que talvez ou não funcione mas que, de fato, balança muito com o vento. no chão, aonde provavelmente havia um ralo antes, um buraco gigante onde eu quase tropecei — ela tentou me chamar, mas não foi dessa vez. uma porta de vidro, como muitas sacadas também têm. um parapeito, tal qual sacadas normalmente possuem. e uma vista incrível do nosso apartamento. caso algum sniper um dia queira me matar, é só vir aqui. mas vai ter que pedir a chave da sala pra moça do marketing do Shopping Della
em suma, a vida é cheia de mistérios. resolva alguns deles.
ééé. não sei. diga “eu te amo” pro seu pai. sei lá
"isabela vc fez um doxxing fudido né" sim! sim. eu fiz mesmo. mas tudo bem eu moro em criciúma
Esse texto é uma resposta àqueles mistérios de Tiktok que são espalhados em vídeos de 5 partes pra no fim não ter resposta nenhuma. É uma parte só e ela acaba com uma resposta, como as coisas deveriam ser.