

Discover more from eu destruirei vocês
eu destruirei vocês #79: Um Dois Três de Oliveira Quatro
Mundo Estranho, Guia dos Curiosos e uma lista infinita de figurantes do Bob Esponja
pegando um binóculo e olhando para o passado, é possível que os anos 2000 tenham sido o ponto da história da humanidade em que crianças curiosas foram mais paparicadas pelas grandes corporações. é como se só nessa época as editoras & produtoras perceberam que, apesar do jovem escutar My Chemical Romance e fingir desinteresse na grande maioria das coisas, ele é sim uma entidade com dúvidas e questionamentos sobre o mundo ao seu redor. querendo ou não, o jovem possui sede de conhecimento. ele precisa saber quais foram os dez terremotos mais terríveis da história
um dos grandes baluartes dessa fascinação com o curioso tão imprescindível à experiência ensino fundamental nos anos 2000 foi ela, a revista Mundo Estranho — nome curioso, considerando que o mundo é extremamente normal. pro bem ou pro mal, de algum modo essa obra impressa acabou moldando o meu jeito de ver o mundo
não sei como isso continua na minha cabeça até hoje, mas eu lembro exatamente da primeira vez que eu comprei uma edição da Mundo Estranho. eu, sendo uma criança fã de revistas — já que possuíam fotos e ilustrações, ao contrário de livros — tratava uma ida à banca de revistas quase como uma peregrinação religiosa. quando avistei no meio de publicações científicas como Super Interessante e Galileu uma capa com uma foto do protagonista de cabelo espetado do anime Yu-Gi-Oh!, fiquei doida — afinal, era 2003 e todas as crianças eram completamente obcecadas pelo baralho do demônio
quando eu abri a revista no caminho pra casa e descobri que ela não só falava sobre jogos de cartas como também continha o conhecimento proibido de quem venceria numa luta entre um tubarão e um golfinho, minha mente mudou pra sempre
a Mundo Estranho era uma revista profundamente adolescente — no sentido real da palavra mas também no sentido anos 90 dela. era uma revista que buscava sempre publicar várias curiosidades sobre meleca de nariz, catarro, xixi & cocô, ou seja, assuntos que todo jovem adora falar & ler sobre. você abria uma página aleatória da revista e tinha 57% de chance de cair em um infográfico intitulado Você sabia? Cocô é merda! com uma ilustração grotesca e desnecessariamente tim-burtonesca de um cocôzão. vocês tem que entender que a pessoa que passa pela puberdade adora fluidos corporais
só pra você ver o nível do negócio, nessa época existia até mesmo um guia especificamente para curiosos. os livros do Guia dos Curiosos eram obras altamente aleatórias por natureza — quase como um amalgamado de informações sem qualquer nexo ou importância jogadas em uma mesma publicação. ou seja, era a melhor coisa do mundo
os anos 2000 foram a única década da história em que se você perguntasse numa sala de aula da segunda série quem foi a pessoa mais alta da história, 78% dos alunos saberiam responder que foi Robert Wadlow, um estadunidense de 2,74 metros morto em 1940. se você pergunta isso hoje em dia, as crianças não vão entender pois estão ocupadas demais se atualizando sobre o caso Raluca ou algo do tipo
mas o fato é que o Guia dos Curiosos era uma entidade poderosíssima nessa época, exercendo mais influência do que alguns governos estaduais pelo Brasil. houve um momento em que se o curioso-mor & criador do guia Marcelo Duarte tivesse saído candidato a presidente, teria terminado pelo menos em quarto lugar, na frente do Cristovam Buarque e atrás da Heloísa Helena. não existia uma criança sequer que não havia decorado a lista de nomes estranhos do Brasil que ninguém até hoje sabe se são reais ou não — Um Dois Três de Oliveira Quatro, se você estiver lendo, por favor me manda um e-mail
depois do sucesso estrondoso trazido pelo conhecimento irrevelado contido em suas páginas, o Guia dos Curiosos acabou tendo outras edições mais focadas. a edição Esportes era, surpreendentemente, sobre esportes e o melhor lugar em que uma criança encontraria a informação definitiva de qual é o maior artilheiro das Copas — não era o único lugar, mas todos os outros eram piores e mais frios. já a edição Brasil tinha uma lista de nomes engraçados de cidades que até hoje surge em memes do Instagram contemporâneos — tipo, quem diabos chamaria uma cidade de Campinas?
as crianças de hoje em dia possuem um acesso ainda mais fácil a todas essas curiosidades. o canal Você Sabia, por exemplo, por mais sórdido e devasso que seja, é certamente um negócio que se existisse na minha época eu consumiria feito uma maluca — os caras são literalmente uma personificação do espírito Mundo Estranho, só que sem um pingo de integridade jornalística
e não é só isso: o Manual do Mundo é só uma versão em vídeo dos infográficos elaboradíssimos da revista, as batalhas do Mussoumano são o a seção Duelo e o Choquei é a Contando Ninguém Acredita da nova geração. os comentários em participações do Space Today em mesacasts são a seção de cartas da geração atual
obrigada por ler a 𝒆𝒖 𝒅𝒆𝒔𝒕𝒓𝒖𝒊𝒓𝒆𝒊 𝒗𝒐𝒄𝒆̂𝒔! caso esteja gostando e queira mais, pode se inscrever gratuitamente — ou assinar por 10 reais ao mês para receber duas edições extras mensais — neste botão abaixo. você também pode compartilhar a 𝒆𝒖 𝒅𝒆𝒔𝒕𝒓𝒖𝒊𝒓𝒆𝒊 𝒗𝒐𝒄𝒆̂𝒔! também ajuda
pedindo ketchup para o Lula Molusco
os figurantes do Bob Esponja
muito já se foi falado sobre isso, mas vale a pena repetir: pessoas que cuidam de fan wikis são os membros mais importantes da sociedade e a falta de políticas públicas para essa gente mostra que o estado brasileiro continua falhando com seus cidadãos. o doido da Wikisimpsons que passou a semana inteira catalogando todos os 750 personagens que apareceram na abertura do episódio de domingo, por exemplo. esse senhor fez mais pela humanidade do que todo policial que já existiu e virá a existir no planeta Terra
e praticamente todo dia eu descubro alguma página específica em alguma wiki aleatória que me faz pensar sobre a obsessão de fãs e até que ponto isso pode chegar — não de um modo ruim ou parassocial, mas sim como se eu estivesse assistindo um matemático ou físico efetuando um cálculo que eu jamais vou conseguir entender. esse fascínio não vem de uma posição de repulsa, mas sim de reverência
a gente cresce achando que o mais longe que um fã pode chegar é sei lá, fazer um cosplay do Capitão Kirk ou ter uma coleção enorme de produtos licenciados da sua franquia favorita, mas quem contribui com essas wikis é muito mais fã do que todos esses outros. quem tem uma coleção enorme de alguma coisa não é fã, é só consumidor. quem dedica sua vida a catalogar todos os diferentes tipos de personagens figurantes do Bob Esponja sim é que pode autointitular-se fã
a melhor parte da internet é que ela trouxe diversos novos jeitos de jogar horas da sua vida no lixo, e um dos mais incríveis que eu já vi certamente é a Lista de figurantes da Encyclopedia SpongeBobia — um nome maravilhoso para um site inacreditável. de acordo com a página, existem mais de 300 figurantes diferentes que apareceram em episódios de Bob Esponja ao longo dos anos — e todos eles, sem exceção, estão aqui catalogados. uma Biblioteca de Alexandria submersa
pelo que eu entendi, internamente esses personagens são chamados de Incidental — pois aparecem na série apenas incidentalmente, presumo. cada um desses Incidentals possui um número, como se fosse o seu código de série, além de uma página própria e incrivelmente extensa na wiki. peguemos como exemplo o Incidental 40: esse peixe azul já apareceu em 144 episódios diferentes de Bob Esponja, quase sempre sofrendo de alguma mazela ou querendo incitar a população a destruir o personagem principal da série
e todas as aparições deste mini-querido estão, uma por uma, catalogadas no site, com uma breve descrição da função dele em cada episódio. isto é loucura. em Turno Macabro — o episódio do Zé do Picadinho — ele pede ketchup para o Lula Molusco em determinado momento, e isso está na página dele. em Seu, Meu e Meu, péssimo episódio da sétima temporada, o Sr. Sirigueijo rouba o Siri Cascudo dele — e essa ação é descrita minuciosamente pelo site. são 144 aparições só para esse personagem, e a Encyclopedia SpongeBobia faz a mesma coisa com todos os mais de 300 figurantes da série. e nenhum colaborador do site recebe qualquer dinheiro pra isso.
como ainda existe gente dizendo que o comunismo jamais funcionaria?
tem um maluco — e com “maluco” eu quero dizer “ex-funcionário da Rare” — que vem compartilhando no Twitter alguns cartuchos da sua coleção e basicamente, um monte de gente burra está irritadíssima porque ele não quer postar na internet a demo da Spaceworld 1997 de The Legend of Zelda: Ocarina of Time pra todo mundo jogar
já eu não me importo muito, só de ver essa tela inicial eu já fiquei extasiada. as pessoas precisam aprender a se satisfazer só de olhar alguma coisa. se isso acontecesse, o consumismo acabaria da noite pro dia. eu não olho pra Monalisa e fico com vontade de comprar ela
ando fascinada com a existência da Copa do Brasil de Roblox, também conhecido como a Taça SantosMakonha em referência ao Santos — e à makonha. aparentemente existem um trilhão de jogos dentro de Roblox e os jovens adoram chutar bolas de uma lado pro outro enquanto controlam personagens com ombros largos
inútil essa porcaria
eu destruirei vocês #79: Um Dois Três de Oliveira Quatro
é foda porque "na minha infância as coisas eram melhores!" é uma das takes mais velhas do mundo (literalmente), mas ainda assim é meio bizarro pra mim que todo o ARCABOUÇO CULTURAL que me criou e estimulou intelectualmente simplesmente não existe (da mesma forma como ele existia, ao menos). guia dos curiosos? já era. tv globinho? já era. neopets? já era. coelho sabido? esse não apenas morreu, como suas cinzas já foram absorvidas pelo cosmos e devidamente recicladas. às vezes tenho a impressão de que a quantidade de espaços *exclusivamente infantis* foi reduzindo cada vez mais ao longo dos anos (quantos programas infantis existem hoje na TV aberta? quantos jogos educativos existem pras crianças jogarem hoje em dia? etc).
no final do dia é tudo maluquice, e daqui a 20 anos um zilennial escreve uma VRletter falando sobre como é um absurdo que essa garotada do futuro não saiba o que foi roblox e é isso aí
Eu adorava a Mundo Estranho, até que em 2007 mais ou menos eu li alguma coisa nela que me deu muito medo, e depois desse dia eu nunca mais consegui ler, pegava na revista e vinha uma sensação ruim. Quando eu consegui voltar a pegar numa Mundo Estranho sem sentir nada, eu já não sentia nada mesmo, nem empolgação :/ perdi várias curiosidades escatológicas