eu fui uma criança estranha. isso talvez seja óbvio, considerando que dificilmente uma adulta estranha surgirá a partir de uma criança normal que tenha tido suas necessidades plenamente preenchidas, mas é importante frisar: eu fui uma criança estranha. apesar de ser nascida e criada em Criciúma, uma grande parte da família da minha mãe vive até hoje em uma cidadezinha no sul de Santa Catarina chamada Turvo — um nome desnecessariamente macabro para um município e que fica ainda mais lúgubre quando você descobre que as cidades vizinhas se chamam Ermo e Sombrio
mas até que faz sentido: são lugares meio afastados da civilização moderna. segundo o Censo de 2020, a cidade de Turvo possui atualmente 12,990 habitantes — e conhecendo o local, eu diria que 70% da população já passou dos cinquenta anos de idade. qualquer pessoa jovem que tenha uma ambição sequer na vida sairá de lá o mais rápido possível, e quem não sair ficará para sempre sentindo um severo pavor existencial por uma vida que nunca teve. ou você foge, ou você morre lá. muita gente sempre morreu lá
várias das minhas primeiras memórias de infância giram em torno de mortes. era uma ocorrência comum. diversas vezes por ano, algum tio-avô morador do interior de Turvo falecia, e nós precisávamos fazer uma viagem de duas horas até chegar na cidade e poder dar um último adeus a quem quer que seja que não existia mais — e em absolutamente todos os casos, eu não sabia quem havia falecido. eu tinha três, quatro, cinco anos de idade: não havia convivido com nenhuma tia Conchetta, nenhum tio Bepe, nenhum seu Nereu. esses homens e mulheres acima dos oitenta anos que haviam morrido tranquilamente em suas casas cercado das pessoas que os amavam, pessoas que eram respeitadas em suas comunidades, tão queridas que até mesmo gente que morava em Criciúma viajava duas horas só para se despedir… elas não significavam nada pra mim. ir a um velório, ir a um enterro era uma formalidade chatíssima. eu sempre levava um gibi da Turma da Mônica e ficava olhando as figurinhas — até o momento em que eu aprendi a ler, que foi quando eu comecei a prestar atenção nas palavras também. quando fomos no velório do tio Edi, uma abelha me picou no braço. minha mãe me deu a chave do carro e eu fiquei lá dentro o resto da tarde
quando eu não estava fazendo isso, eu estava caminhando pelos cemitérios. até onde o meu conhecimento vai, existem dois cemitérios na cidade de Turvo: um deles fica mais afastado, na localidade de Morro Chato, que é onde grande parte da família Dal Pont / Manfredini viverá eternamente, e o Cemitério Municipal, mais perto do centro da cidade e muito maior em território. enquanto minha mãe e minha tia conversavam com parentes que eu nunca havia visto na minha vida, eu gostava de simplesmente passear ao redor dos túmulos e ficar analisando o que se passava neles
talvez eu tenha sido uma criança obcecada por números, fatos e datas, mas eu prestava muita atenção em quando uma pessoa havia nascido e quando ela havia morrido. realizava uma rápida equação mental e chegava à conclusão de que esse membro da família Pieri não havia chegado aos trinta anos de idade. eu via os porta-retratos espalhados dentro do jazigo e realmente, havia uma foto de uma pessoa com uma aparência muito mais jovem do que todas as outras. eu não sei exatamente qual sensação isso causava em mim, mas não era medo. era uma certa aceitação. uma resignação. é. é isso que acontece de vez em quando
da parte de pai, eles estão enterrados no Cemitério Municipal São Luís. o maior cemitério de Criciúma é um lugar que eu não frequentava tanto assim na minha infância: a minha família paterna é meio que um mistério pra mim, por motivos que nunca cheguei a entender ou ir atrás de entender. entre pelo portão principal, caminhe cerca de 50 segundos, olhe para a direita e você encontrará o jazigo da famílai Thomé. atualmente, João Thomé e Maria Zilli Thomé lá residem — e provavelmente o farão para todo o sempre.
eu não cheguei a conhecer nenhum dos dois: eles morreram praticamente em sucessão alguns poucos anos antes de eu nascer, um de câncer no pulmão e uma de coração partido. nossas visitas a esse cemitério quase sempre se resumiam a isso: eu sabia que ele era enorme, uma quadra inteira no coração da avenida Santos Dumont, mas nunca cheguei a explorá-lo do mesmo modo que explorava cemitérios de outras cidades. ele era mais… enigmático. eu sentia que poderia facilmente me perder lá, o que fazia eu não querer sair de perto da minha mãe limpando o túmulo alguns dias antes do 2 de novembro. ela levava uma vassoura, um balde, alguns panos. de vez em quando, esquecia a vassoura dentro do jazigo. ela ficava lá para o próximo 2 de novembro. antes deste 5 de agosto, eu não lembro qual a última vez que eu havia entrado no Cemitério Municipal São Luís, mas às vezes você sente uma necessidade gigante de fazer algo. você sente que precisa. às vezes é enorme, e às vezes ocupa uma quadra inteira
é claro que existe algo pacífico, algo belo, algo sublime em um cemitério. se não existisse, nenhum adolescente gótico e nenhuma jovem fã de Lana Del Rey se aventuraria por essas quatro paredes. na verdade, talvez seja um dos lugares mais pacíficos que existem: até podem existir almas aqui, mas nenhuma delas vai te incomodar. salvo um casal limpando o jazigo de um ente querido, não tem ninguém em um cemitério ao meio-dia. é o último lugar que você quer estar, mas existem momentos na vida em que é o lugar exato onde você precisa estar. é onde faz mais sentido. é onde você sente um turbilhão de emoções enquanto escuta Innocent When You Dream (78), faixa final do disco Franks Wild Years, de Tom Waits — e você nunca coloca os dois fones no ouvido quando está na rua, mas existem momentos em que você precisa fazer isso.
hoje, chegar e ver um túmulo de uma pessoa jovem tem um outro significado. uma pessoa que nasceu no mesmo ano que você, mais nova por questão de meses, mas que partiu antes — às vezes, nascida em 1996, ela faleceu em 2013. talvez em 2017, talvez em 1999, talvez em 2023. uma foto em um porta-retrato dentro de um jazigo que parece ter sido tirada com uma câmera de celular tem um impacto muito maior do que uma 3x4 obrigatória que muitas vezes era o único registro daquela pessoa em vida. uma foto de um homem que morreu aos 19 anos com o mar ao fundo, e não com um tapume branco de um estúdio de fotografia. uma foto de uma jovem de 24 anos em sua formatura, capelo na cabeça, ao lado de um porta-retrato do pai também falecido. é ter um contato direto e forçado com a interrupção da vida, de sonhos, de metas, de encontros. todas as coisas que não terão a oportunidade de existir e de acontecer. deixando por um instante a minha parte mais egoísta falar, não há nada mais cruel que isso
o trajeto da minha casa até o Cemitério Municipal São Luís dura cerca de 35 minutos. passa por três supermercados, um parque municipal, uma sede de prefeitura e uma agência publicitária onde eu trabalhei até o início desse ano. no caminho de volta do trabalho, eu sempre passava por uma casa que estava lentamente sendo demolida em uma esquina na rua Vitor Meirelles, mais ou menos na altura do Giassi no bairro Santa Bárbara. todo dia eu via um pedaço novo da casa sendo destruído. uma parede a menos, pedaços de janelas espalhados pelo terreno, homens com marretas trabalhando diariamente na aniquilação de um espaço onde antes havia, querendo ou não, a presença humana. a existência. a vida.
hoje, após meses sem andar por essas ruas, vi uma nova construção.
cuidem-se. cuidem uns aos outros
Esse teu texto me fez refletir um pouco a respeito de coisas que eram comuns pra mim no passado e que hoje não são mais. Quando criança, eu visitava várias vezes por ano o cemitério da minha cidade natal. Meu pai faleceu logo depois de eu nascer, então para mim era comum ir até lá para levar flores, acender velas e rezar um pouco, com o passar do tempo, isso foi deixando de ser tão frequente, acredito que conforme o tempo passa, acabamos nos acostumando com a ideia de que alguém que a gente ama (sem mesmo ter conhecido direito) não está mais entre nós.
Quando eu era pequeno, o único motivo de ir ao cemitério era para "visitar" o meu pai, mas com o passar dos anos, o número de entes sepultados nesse mesmo cemitério foi aumentando, primeiro minha avó materna, depois meu irmão, então meu avô paterno e mais recentemente, meu avô materno, entretanto, minhas visitas não aumentaram proporcionalmente ao número de pessoas queridas pra mim que estão "descansando" lá, não tenho dúvidas que o fato de não acreditar em Deus tenha contribuído para isso, mas sou sincero em confessar que as vezes simplesmente quero evitar a sensação de chegar lá e ver que essas pessoas realmente se foram, o que contrapõem a ideia que de que vamos nos acostumando com isso, as vezes simplesmente preferimos ignorar ou então, pensar em outras coisas.
Oi Isabela! Eu tava lendo um livro sobre urbanismo semana passada que tem um trecho sobre isso que pra mim faz muito sentido: tem um mito de que as cidades cresceram como uma fortificação, uma proteção (muros etc) mas na verdade a maioria delas nasceram de algo muito mais ritualístico e espiritual. Roma por exemplo foi fundada por um cemitério, o que faz muito sentido já que é super importante pra qualquer civilização marcar um lugar como nosso, e pra isso nós precisamos da conexão com o passado. Louco, né? Bjs.